Diante das dantescas cenas que presencio diariamente no início de cada semestre, nas movimentadas ruas que cercam as Instituições de Ensino Superior (IES), especialmente observando em Florianópolis, mas também conhecedor de que alvoroços semelhantes ocorrem em milhares de outras espalhadas pelos quatro cantos do país, não tenho como ficar alheio a questionar o sentido desta tradição que remonta à Idade Média e que insistem em manter vivo, de um único jeito e forma, o que já morreu: o trote estudantil.
Mascarado de rica tradição acadêmica, de elevado valor histórico, pleno de sentidos e integrador dos alunos advindos de várias cidades ao ambiente universitário, o trote, muitas vezes encarado até como uma prática religiosa na qual se opõem em lados contrários, iniciados e iniciantes, na realidade, enfatiza, especialmente nos últimos tempos, seu caráter mais degradante, sobretudo excludente, que põe de lado as presumíveis boas maneiras e qualidades mais diversificadas da boa recepção dos calouros pelos veteranos, notórios conhecedores dos valores humanistas que se vive na universidade. Assim, “domar” o calouro para que aprenda a andar (trotear) segundo as leis convencionadas e convenientes aos veteranos, parece ser uma forma de interpretação e significado, que encontra fundamento no “trote” aplicado pelos calouros. O método então diz: aprende-se a trotear, na base da bordoada. Mas isso, claro, é apenas uma interpretação.
Isso desde o tempo em que a elite brasileira do século XIX, muito especialmente, após retornar de longos tempos de estudos e esbórnia nas universidades europeias, trouxe na bagagem este ritual, implantando-o sem contestar nas instituições brasileiras que vinham nascendo. Assim, encontrou terreno fértil em todas que mostravam algum exagero na nostalgia pela Mãe Europa, colonizadora e matriz do desenvolvimento almejado para estas terras, para as plagas coloniais.
O que pensar hoje de um jovem cidadão que vem para a universidade, pensando que aqui ele finalmente vai ter acesso ao conhecimento de alta qualidade, alicerçado na discordância e questionamento com tudo aquilo que de mais retrógrado existe no pensamento contemporâneo e se depara com uma prática medieval, colonial e humilhante, que remonta a um tempo do passado, que o conhecimento universitário alardeia relegar à obscuridade e à ignorância? Aqui esta prática ainda é aclamada como moderna, ideal e sofisticada forma de integração social e boa técnica de acolhida, apoio e inclusão dos que começam uma nova fase nas suas vidas, que poderá os levar a entender o mundo e transformá-lo com uma prática pessoal inovadora.
Quando ingressei numa faculdade de SC, não me contive diante de alguns absurdos que observei, diante da violência dos alunos e da ausência de posição da direção. Encaminhei um e-mail a todos os diretórios acadêmicos de dezenas de cursos, assim com o ao centro acadêmico daquela universidade, demonstrando e exemplificando as vantagens sociais, políticas, culturais, inclusive ideológicas do assim chamado trote solidário ou trote cidadão. Expliquei longamente o benefício aos diversos cursos, caso a caso, em demostrariam para a sociedade que uma nova geração estava entrando no ambiente universitário, um novo cidadão iniciava seu processo de responsabilidade social e que não estavam vidando às costas à cidade, durante os quatro, cinco ou mais anos em que estivessem presentes naquela urbe. Convenceriam assim que desejavam mais a mudança da sociedade pelo exemplo deles próprios do que gritar por reformas em praça pública e em casa, fazer diferente. Não recebi um retorno sequer daqueles e-mails que encaminhei.
Mas, para minha surpresa, no semestre seguinte daquele ano, estavam em todos os murais da universidade, convites ao Trote Solidário: campanhas de alimentos para asilos e centros comunitários da periferia, com visitas aos locais com veteranos e calouros, formação de grupos para doarem sangue, campanhas de agasalhos, cobertores, colchões, móveis, para diversas famílias em situação de risco social, visitas à clínicas de tratamento de dependentes químicos, trabalhos voluntários para reformas e pinturas de creches, praças e áreas de lazer das comunidades carentes, enfim, uma gama de ações que colocavam aos olhares da cidade, um novo cidadão que revelava uma face ainda não vista daquele ambiente estudantil, daqueles cursos que encontravam no trote solidário uma forma de estarem mais perto daqueles ambiente em que no futuro iriam atuar.
Finalmente, fica aqui um olhar para a reflexão a partir de uma experiência pontual que deu certo. Passaremos longe do medo de que aconteçam trotes violentos que estampem as capas dos jornais do mundo inteiro, como aquele que em fevereiro de 1999, mostrou o horror de um corpo no fundo de uma piscina e um grupo de alto reconhecimento social, os aprovados em Medicina na USP, sendo chamados para depor sobre a morte do estudante Edison Chi Hsueh, vítima de trote na festa de recepção dos calouros daquela renomada instituição.
A universidade que se ufana dos valores humanistas cultivados sob os limites de suas fronteiras, não pode ser responsabilizada por atos que aconteçam extra murus (?). Mas deveria, talvez sim, ser corresponsável pela (in)consequente formação ético-social-humanista de seus alunos, mesmo os mais alheios ao processo acadêmico, muitas vezes mais visitantes do ambiente universitário, e mais fiéis frequentadores de baladas e festas que são divulgadas à exaustão nos murais e corredores do ambiente universitário.
Se não conseguimos desenvolver cidadãos para o novo, para a criação do ainda não visto, para a inovação, a pesquisa e a proposição de uma sociedade em que se possa conviver com responsabilidade e sentidos comuns, o que nos resta é observar hordas cruéis de pedintes, esmolando atenção social e míseros centavos nos semáforos, levando ao riso uma sociedade que desacredita que quem repete alegremente costumes que remontam à dita “obscuridade medieval”, possa ser responsável para transformar uma sociedade que grita a carência de líderes que mostrem novos caminhos e significados, analisem o passado e construam uma nova cidadania, cunhada mais na ética e no compromisso social do que na educação formal, ainda alheia, por vezes omissa, ao desenvolvimento integral da pessoa, uma tarefa que ainda lhe é colocada aos ombros.