sábado, 23 de novembro de 2019

O REINO DE DEUS JÁ ESTÁ NO MEIO DE VÓS. (Lc 17,21)



Inicialmente, para entendermos o que é o Reino de Deus, é preciso saber de onde veio esta expressão e quem formulou por primeiro este jeito de pensar a relação comunitária com Deus.

Israel nasceu da junção de várias etnias e vivia unido em pequenas comunidades. O Senhor Deus era o rei de Israel. Seu culto, bem simples, em altares de terra ou de pedras mal talhadas, era dirigido por anciões. Mas, ao ver que cada povo em volta tinha seu rei, pediram também ao profeta Samuel um rei: “Dá-nos um rei que nos governe, como o têm todas as nações”. (1Sm 8,4-5)

O Senhor manda Samuel atendê-los, embora com isso estejam rejeitando o reinado do Senhor, quando diz ao profeta: “Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não querem que eu reine sobre eles”. (1Sm 8,7-9)

Samuel previne o povo sobre os males que lhe advirão com a escolha de um rei, mas o povo não ouve suas advertências e que um rei mesmo assim. Então, o Senhor manda Samuel atendê-los. O primeiro rei foi Saul (1Sm 10,1). A seguir foi ungido Davi (1Sm 16,12-13). E, logo após seu filho, Salomão (1Rs 1,39). A partir daí, o culto foi centralizado pelo rei que agora cuidava do Templo aonde o povo tinha que acorrer. “E Davi disse: ´É aqui a casa do Senhor Deus e este o altar dos holocaustos de Israel’”. (1Cr 22,29)

O rei recebia vários títulos que lhe conferiam status semelhante à divindade: intocável, pastor do povo, senhor do universo, embora esta tradição já começa a ser aplicada ao futuro Messias, Jesus Cristo. Ele é Rei (Mt 2,2; Mt 27,42; Jo 1,49), mas o seu reino não é deste mundo. (Jo 18,33-38) Por isso não aceita ser aclamado rei dominador e terreno (Mt 4,9-10)

O Reino de Deus teve início com a instituição temporal e nacional do reino de Israel. Após o exílio da Babilônia, o Reino do Messias é considerado, numa ordem mais religiosa e espiritual, como uma era de paz e de justiça universais. Nosso Senhor elevará este Reino messiânico acima de toda perspectiva nacional e temporal: trata-se, acima de tudo, do Reino de Deus nas almas, de sua manifestação exterior nas almas e de sua consumação gloriosa no fim dos tempos.

O Reino de Deus é primeiramente todo o universo, em razão de sua criação e conservação.
O Reino de Deus é, de um modo especial, o povo de Israel, em razão de sua escolha.
O Reino de Deus é instaurado no NT, mediante a pregação da penitência e da conversão.

Ao Reino de Deus são chamados primeiramente os judeus e, depois, todos os homens e mulheres.
Este Reino tem uma fase temporal e outra eterna. É uma expressão que aparece nos livros mais recentes do AT, com no livro da Sabedoria e no livro de Daniel. Indica, desde o AT, a soberania de Deus nos seres humanos: Deus Reina, Deus é Rei.

No NT, a expressão Reino de Deus é mais presente nos evangelhos sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas. É o tema central da pregação de Jesus. É ilustrado com muitas parábolas e anunciado como uma realidade já presente “O reino de Deus já está no meio de vós” (Lc 17,21). O cumprimento pleno será na escatologia, nos últimos tempos da vinda de Jesus. Até lá, Deus precisa reinar em mim.

Isso inquietou São Bernardo de Claraval (1090-1153), um monge do Séc. XII, quando diz que a meta da vida cristã não é a visão de Deus aqui na terra, pois ele sabe que isso está reservado para o céu. Nem tampouco perseverar na fé “conhecendo” a Deus através da intelectualidade ou dos dogmas. Para conhecer a Deus, é preciso que ele venha ao nosso encontro. E para isso São Bernardo tem uma direção certa.

Antes dele, os cristãos falavam de duas vindas de Cristo. A primeira foi a vinda humilde e histórica na Encarnação. A segunda será o seu retorno glorioso, que porá fim à história tal como nós a conhecemos e que inaugurará um novo céu e uma nova terra. Mas, onde é que Cristo está neste espaço de tempo intermediário entre a Ascenção e a Parusia?

São Leão Magno (400-461 d.C.) afirmou num sermão sobre a Ascenção, que no dia de sua exaltação ao céu “sua presença visível passou para os sacramentos”. Cristo não está mais disponível aos nossos sentidos corporais, mas está presente à nossa fé. Foca-se então na divindade de Cristo, de modo que intensifiquemos a fé nele. Os sacramentos são sinais e mistério de sua presença no nosso meio.
São Bernardo acreditava que não é mais possível relacionar-se com Cristo da mesma forma que os discípulos nos bons e velhos tempos da Galileia. Este modo nos poderia desfazer a nossa salvação, uma vez que Cristo nos redimiu precisamente por sua Morte, Ressurreição e Ascenção.

Mas como Jesus poderia se relacionar com a pessoa humana, então? Ele mesmo disse: “Se alguém me ama, guardará minha palavra, e meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos nele nossa morada. (Jo 14,23) Jesus havia prometido habitar naqueles que o obedeciam. De igual modo, em Mateus, suas últimas palavras são: “E eis que estarei convosco até o fim do mundo” (Mt 28,20) É promessa divina, portanto, realizável de fato. Jesus está conosco, ele é Verdade e fala a verdade.

Mas Jesus vem a nós de forma humilde, próxima, como um amigo. Mas um amigo cuja presença nos traz sentimentos de temor reverencial. Vem para iluminar nossas mentes e corações. Nossas decisões e atitudes. Ele vem a nós interiormente, não “lado a lado”, como um ser humano para o outro. Vem na intimidade do dois-em-um. Como duas almas num só corpo, como duas pessoas numa só carne. Conosco Ele quer ser um só. Amigo, Deus-Presença. “Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. (Mt 11,27)

A possibilidade de se relacionar com Jesus que São Bernardo nos apresenta, no aqui e agora, memória e presença, encontro e despedida, nos torna mais atentos à presença de Cristo em nós, nos nossos irmãos, na Igreja, nos sacramentos. Não nos afasta da realidade, mas a torna objetiva.

Na vida sacramental que encontramos Jesus presente em nosso meio. Nos sacramentos, o Espírito Santo de Deus vem fazer morada em nós de uma forma que nos faz acolher Deus verdadeiramente, como nosso Rei. É em nós que ele quer reinar. Ele também percebeu que obedecer a Deus depende claramente da imagem que fazemos de nós mesmos e de Deus.

São Bernardo entendeu, primeiramente, que para um grande número de pessoas de seu tempo, Deus era Senhor e a criatura, escravo, servo. Não importava a classe de pessoa. Mesmo se fosse o rei terreno: Deus era “Rei dos reis”. Não importava se fosse um senhor feudal. Deus era o “Senhor dos senhores”. Portanto, neste estágio, a obediência a Deus era pelo medo. Medo com uma boa mistura de ressentimento: ai de mim se não obedecer a Deus. O castigo seria terrível.

Enquanto refletia sobre este grupo, percebeu que havia um outro grupo de pessoas, para os quais Deus não era um senhor terrível, mas um rico Senhor, para o qual se poderia conseguir algum lucro. Pensava-se: paciência. Podemos suportá-lo, pois Ele nos dará algo que bem merecemos! Dele ganharemos dinheiro, prosperidade, saúde, bens, sucesso, vida longa. Sim, o obedeceremos, mas não se esqueça da sua generosidade. São Bernardo os chamava este grupo de mercenários!

Ele identificou, por fim, um terceiro e último grupo. Os integrantes viam Deus como um Pai. Não negavam seu poder. Não negavam sua abundância infinita. Mas percebiam que nem o poder, nem as riquezas eram características determinantes de Deus. Mas Deus era um Pai tão autêntico, que fazia o sol brilhar para os justos e os injustos, e a chuva cair sobre os gratos e os ingratos. Que cuidava de suas criaturas, de cada fio de cabeço, de cada pássaro do céu. Era um Deus benevolente.

Entretanto, o impressionava que este terceiro grupo não gerou esta imagem a partir de si mesmos. Antes, receberam por Revelação da realidade de Deus na Pessoa, nas palavras, nos gestos e no destino de Jesus Cristo. Ora, se Deus é Pai, então eu devo ser seu filho. Minha obediência não requer segundas intenções: medo ou privilégios. Trata-se de uma resposta espontânea à bondade de um Pai que continuamente experimento em minha vida. Esta obediência, portanto, se baseia numa experiência de relacionamento com Deus, na comunidade. Aqui o que conta não é evitar sua ira ou obter seus benefícios, mas conta simplesmente a alegria de perseverar indefinidamente, na relação com Deus, meu Rei, meu Senhor e meu Pai: “Minha alegria é fazer a vossa vontade”. (Sl 118,16)

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O REINO DE DEUS ESTÁ ENTRE VÓS


   



    I – SÍNTESE BÍBLICO-TEOLÓGICA

1.         O antigo Testamento e do Reino de Deus
No Antigo Testamento, os israelitas consideraram Deus como soberano, “rei das nações” (Jr 10,7), “grande rei de toda a terra” (Sl 47,3). Entretanto é preciso saber o que eles queriam dizer com estas expressões.

a)      Tradições históricas e oracionais
A expressão “Deus reina” pode ter nascido com a monarquia israelita. Provavelmente os reis exerciam também a função judicial, sobretudo velando pelos indefesos sem proteção alguma. Os Salmos falam de governar o povo com justiça, salvar os pobres (Sl 72,2.4).
É lógico que os israelitas entendessem reino não como um território, mas como realidade social que proclamava mudança de relações humanas no mundo. Entretanto, os reis de Israel e Judá não estiveram, em geral, à altura de sua missão.

b)      Tradições proféticas e apocalípticas
Diante deste horizonte nada favorável, os profetas foram depositando o cumprimento das aspirações de justiça do povo, na pessoa do Messias. Este, descendente de Davi, implantaria a justiça na terra. A experiência amarga do exílio não diminuiu esta esperança. Ao contrário, a reavivou. Como diz o Salmo 47,4 o Messias realizará o seu juízo à história.
Esta esperança, da revelação do poder de Deus na história humana, é característica dos profetas, foi recolhida nos escritos apocalípticos. Na época dos Macabeus, Israel resiste à invasão dos gregos. Os autores apocalípticos, fazem soar o grito pela justiça definitiva de Deus. Autores como Daniel, revelam a figuro da Filho do Homem, que virá para estabelecer o reinado de Deus sobre a ruína dos invasores. 

c)       O poder salvífico de Deus
Podemos ver então o que celebrava o israelita quando clamava a Deus como rei: celebrava o poder salvífico de Deus. Este poder se faz presente sobretudo nas intervenções históricas em favor da vida do seu povo, cujo ponto mais significativo foi a libertação da escravidão no Egito (Ex 15,18; Nm 23,21). O cântico de ação de graças pela libertação é um hino que resume a experiência salvífica: “Reina, Senhor, para sempre”. (Ex 15,18).
O Reinado de Deus se desdobrará totalmente no final dos tempos (Sl 98,9). Neste dia cessarão as discórdias e os reis de toda a terra sentarão numa mesma mesa comum. É o banquete messiânico, quando haverá paz e justiça no mundo e todos serão como irmãos.
No Novo Testamento, a expressão Reino de Deus que se lê nos evangelhos foi formulada progressivamente ao longo do Antigo Testamento e traz a mensagem de Jesus como o que trouxe o reino e com o qual ele se identificou.

2. O Novo Testamento e o Reino de Deus 

a)      Expectativas e reações dos judeus
A tradição judaica gerava diversas expectativas entre o povo judeu, no tempo de Jesus. Aqueles que pensavam o reino numa visão mítica, o aguardavam com grande poder e glória. Porém, veio a humildade da carne e não o reconheceram (Lc 17,20; Jo 1,10-11).
Seria o Messias a instaurar o reino e ele reinaria no universo. Ele vencerá o mundo presente, corrompido e estabelecerá, no final dos tempos, seu reino, um mundo novo e definitivo. Para converter este sonho em realidade, era necessário expulsar os inimigos de Israel, mesmo que para isso fosse necessário pegar em armas, ou submeter-se totalmente à Lei. Assim pensavam os fariseus. Já não se pode esperar mais que esta hora se realize. Era preciso fazer alguma coisa. Os discípulos de Jesus pressentiam que ele era o Messias (Lc 9,51-56; 19,11) e que iria dispor do Poder de Deus para esta mudança. 

b)      A chegada do Reino
Jesus não deu simples definições do Reino, mas compartilhou as esperanças que a tradição judaica lhe havia legado sobre como Deus reina.  Sobretudo, apresentou a sua vida como novidade radical, como mensageiro anunciado por Isaías (Is 52,5-7), que traz a grande notícia: Deus, em sua pessoa, aproxima-se totalmente dos homens, cumprindo assim suas promessas de salvação, da mesma forma como se comunicou a Moisés. Se antes enviou Moises para salvar seu povo, agora envia o próprio Filho para anunciar esta salvação plena.
Os anseios mais profundos dos homens e das mulheres de Israel encontravam eco realizado no que Jesus era e no que lhes dizia, porém, no mesmo tempo, sentiam-se desconcertados por seu proceder. Jesus mostrava-se herdeiro das tradições do AT sobre o Reino (MC 13,26), porém sabia romper os esquemas vigentes de seus contemporâneos e inaugurava o caminho novo do Servo de Javé (Lc 4,16s). Jesus abria caminhos diferentes do esperado e começou a tornar realidade a proximidade de Deus e sua presença salvífica do Pai. 

c)       Cristo mesmo é o Reino de Deus
Jesus começou sua pregação anunciando que “o reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). Ao final de sua vida não temerá mostrar diante do governador romano: “Tu o dizes, eu sou rei” (Jo 18,37), e ouvirá da cruz a súplica do ladrão: “Lembra-te de mim quando vieres como rei” (Lc 23,42). Jesus, ao longo de sua vida, percebia que o reino futuro estava se tornando presente em sua ação e que, na sua pessoa, aparecia na terra algo novo: o amor infinito do Abbá, do Pai, por todos os seres humanos (Mc 1,15). 

d)      Sinais do Reino
O comportamento de Jesus com os pobres explicitou a missão que o Pai o encarregava, de instaurar o reino de Deus. Sua insistência em comer com os pecadores, traduzia este núcleo da sua mensagem. Sua presença e o Reino estavam discretamente presentes no coração das parábolas, respeitando a liberdade dos ouvintes. Por isso foi diferente a reação dos que o ouviram proclamar. Aceitar e converter-se ou rechaçar e fugir da luz. O Reino de Deus vai sendo apresentado em muitos “milagres, prodígios e sinais” (At 4,2) que mostravam que somente estaria no meio de todos, se acolhessem a pessoa e a mensagem de Jesus. Por onde passava, a todos libertava: das doenças, do mal e da morte. Trazia presente o Reino. 

e)      Características do Reino e condições para entrar nele
O povo acolhia a mensagem de Jesus de maneiras diferentes. À semelhança da parábola do semeador. É verdade que encontra obstáculos, porém o grão também cai em terra boa e dá frutos. Um grão de mostarda cresce, um pouco de fermento leveda a massa toda. Gestos sem grande relevo, vão aos poucos transformando vidas e corações. Sempre há uma esperança em mudança e vida nova. Jesus comunicava aos seus ouvintes, por imagens e parábolas, os segredos do Reino. O Reino não se pode medir, ou dizer que “está aqui ou ali, porque o reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17,21). Em mistério, o reino está escondido, no coração daqueles que o aceitam. Mas para a plenitude do reino, é preciso que o grão de trigo morra. Na morte da semente está contida a vida (Jo 12,24).

3. A missão da Igreja 

a)      Reino e Ressurreição
A manifestação do ressuscitado e a vinda do Espírito santo confirmou definitivamente aos discípulos o começo da chegada do reinado de Deus que Jesus anunciara em sua existência terrena. À pessoa de Jesus se vinculava a pregação do Reino. Jesus anunciava o Reino. A Igreja nascente anuncia Jesus ressuscitado. Estão seguros de que anunciar o ressuscitado é anunciar o reino (At 19,8; 20,25; 28,23; 1Ts 2,12). O Reino consistirá de agora em diante, no objetivo da ação missionária. Receberão o Espírito Santo e serão testemunhas do Ressuscitado no meio do mundo (At 1,8). A Igreja será sinal do Reino de Deus entre nós. 

b)      Igreja e Reino
A Igreja está a serviço do Reino. Ela existe para evangelizar (EN 14). Como Jesus, é chamada a ser sinal do Reino (LG 5). Ao longo da história, deu frutos abundantes. Mas não está livre dos assaltos do Mal. Daí que comece a evangelizar a si mesma a fim de poder evangelizar o mundo (EN 15). O Espírito suscita a cada tempo, testemunhas, às vezes escondidas, que vão encarnando os valores do Reino no mundo. O Reino já está, misteriosamente, em nosso meio. A Igreja não esgota toda a riqueza do Reino, mas é germe e princípio dele aqui na terra. 

c)       Sacramentos, vida cristã e Reino
Quando um cristão celebra a Eucaristia, faz presente este mistério do Reino. Reconhece sua colaboração com o mal, é reconciliado, escuta a Palavra e participa do banquete dos batizados. Torna-se missionário, propagador do Reino, sal, fermento e luz no mundo.
Já São Paulo recordava aos cristãos o valor da ceia do Senhor (1Cor 11,26), e o Mestre estabelecera um laço de união entre a última ceia e o banquete do Reino (Mc 14,25). Este processo também se realiza em cada um dos sacramentos. É o Espírito Santo que leva a pessoa a aspirações, compromissos e realizações que aparecem como sinais de Deus para o mundo. Esforçam-se a repartir com mais equilíbrio seus bens e não esquecem da dignidade humana e da união fraterna. São frutos que buscamos construir para serem iluminados pela ação de Deus através de seu Filho Jesus, presente na sua Igreja e nos Sacramentos. 

d)      Diferentes formas de vida na história
A existência humana, aberta ao Espírito Santo de Deus, é o Reino. Este entendimento do Reino se deu de diversos momentos na história. Nos primeiros séculos, como afastamento do mundo, na vida monástica. Os mendicantes, na Idade Médio, compreenderam a partir da humilde vida simples e ao serviço aos pobres. O século XVI, a compreendeu como heroica superação pessoal e forte empenho missionário. Os santos da modernidade, viveram a partir da caridade e da abnegação até o martírio. No nosso tempo, viver no mundo, sem por ele se contaminar pelas suas ilusões, mas com fé viva.


      II – OS SINAIS DO REINO, HOJE 

     a)      Anseios humanos, sinais da realidade do Reino
A semente do Reino, semeada no mundo, caiu em terrenos diferentes. Mas os frutos já começaram a serem colhidos. Mesmo embora os sinais da presença do Reino estejam envoltos na limitação e ambiguidade de tudo o que é histórico, apesar de todas as contradições sempre emerge no mundo alguma coisa de humanizador.
Hoje desenvolve-se na consciência dos homens e mulheres grande respeito à natureza, ao mesmo tempo em que há grande degradação. Levanta-se por toda a parte o clamor pela paz, que coexiste com a tragédia da guerra. Ao mesmo tempo que a humanidade tem visto nascer a consciência sobre si mesmo, simultaneamente vê-se envolta em ações e atitudes desumanizadoras. 

b)      Sinais diversos no nível relacional
Em relação com a pessoa, aflora uma busca progressiva de unificação, cresce a consciência da dignidade da pessoa e seus direitos. 

c)      Em relação com a natureza
Cada vez mais, as ciências sociais buscam dar resposta à exigência universal de uma mais justa distribuição da riqueza e de uma vida mais simples e respeitosa com relação a tudo que nos cerca e a toda a humanidade. 

d)      Em relação com Deus
Surge o desejo, sempre presente, de encontrar sentido à vida, de buscar a transcendência, a verdade, uma espiritualidade que sacie a sede do coração humano. Estes desejos manifestam-se em fatos, configurados como movimentos globais.
Enfim, distinguir os sinais do Reino é tarefa de todos os batizados. É preciso fé para buscar conhecer os caminhos que Deus nos mostra ao longo da história humana. É necessário conhecer profundamente os contextos a que se referem, buscam que a Iniciação à Vida Cristã seja fundamentada na ação do Reino e possa favorecer o seu crescimento. Esta tarefa, de aproximação com Deus é um caminho sem volta.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

SÃO CARLOS BORROMEU: MODELO DE PASTOR NA INTERPRETAÇÃO DE UM CONCÍLIO



No início do mês de novembro, precisamente no dia 2, comemoramos a memória de um dos mais eminentes bispos do século XVI e grande propagador da reforma da Igreja Católica: São Carlos Borromeu, arcebispo de Milão e cardeal da Santa Igreja Católica.

Mas o que este homem, de uma história tão distante do nosso tempo, pode ainda hoje nos alertar sobremaneira sobre os aspectos interpretativos que forjaram o sucesso do Concílio de Trento (1545-1563)? De que modo ele pode contribuir para uma análise eclesiológica no nosso tempo, a partir de suas ideias, conceitos e atitudes na sua época? E o que isso tudo pode influenciar ainda hoje a Sagrada Tradição, que permanece como fonte interpretativa, de igual forma que a Sagrada Escritura e o Sagrado Magistério? É um pouco sobre este tema que me atrevo a escrever.

Carlos Borromeu nasceu em 2 de outubro de 1538 em Milão. Era filho do Conde Gilberto Borromeu e de Margherita de Medici, irmã do Papa Pio IV (Giovani Angelo di Medici). Portanto, Carlos era sobrinho do Papa.

O Papa Pio IV concluiu o Concílio de Trento com grandes reformas ainda no tempo de seu governo papal.  Para frear o avanço do protestantismo, concedeu a comunhão sob duas espécies para os católicos da Alemanha, Áustria e Hungria, em 1964. Mesmo que isso tenha sido proibido pelo Concílio.

Carlos, após um tempo de estudos na Universidade de Pavia para estudar direito civil e canônico. No ano de 1554 seu pai faleceu e foi então administrar os bens da família, retornando aos estudos e doutorando-se ainda no ano de 1554. Neste mesmo período, seu tio Giovanni foi sagrado papa. O então Papa Pio IV chamou seu sobrinho para Roma e em 13 de janeiro de 1560 o nomeou protonotário apostólico e em 31 de janeiro do mesmo ano o sagrou cardeal (com apenas 22 anos!), antes mesmo da ordenação presbiteral. A ele o Papa confiou o governo dos Estados Pontifícios e a supervisão dos franciscanos e carmelitas.

Carlos Borromeu transformou a igreja em Milão. Tornou-se para a Igreja, um modelo de pastor. Ele, logo após ter auxiliado o Papa e tê-lo motivado para colocar em prática todo o inspirado conteúdo do Concílio de Trento, assumiu com todo o ardor a missão de obedecer às decisões que levaram à contrarreforma, o qual respondia as necessidades da Igreja daquela época.

A partir do concílio, foi o primeiro bispo a fundar diversos seminários para a formação dos futuros padres; promoveu sínodos diocesanos; abundou os escritos catequéticos e conhecimento da doutrina católica e impulsionou a Evangelização de outras áreas da Europa. Desta maneira deu sua vida a Deus gastando-se totalmente pelo bem dos outros e da Igreja.

Os seminários que fundou, aos poucos ficavam superlotados. A disciplina, a fonte doutrinal segura e os avanços à pureza da fé católica, colocaram a vida eclesiástica nos eixos. Naquela época, a falta de identidade e a busca por outros objetivos pessoais que não a salvação, levaram os clérigos a abjurar de sua fé e viver uma vida dissoluta.

Em Milão, com a correta interpretação das determinações conciliares, o resultado de tamanho e abnegado esforço de seu bispo, fizeram com que os seminários tivessem de ser construídos e ampliados ano a ano. As reformas pretendidas por Lutero e que esmagaram a identidade católica em boa parte da Europa cristã, não foram suficientemente profundas na diocese de Milão, sob o governo do seu arcebispo e cardeal, Carlos.

Foi amigo de São Francisco de Borja, São Felipe Neri, São Pio V, São Félix de Cantalício, Santo André Avelino e muitos outros. Chegou inclusive a dar a primeira comunhão ao adolescente São Luís Gonzaga.

Combateu fortemente os abusos clericais da época, especialmente ligados às questões de apego ao dinheiro, falta de vida espiritual, falta de identidade presbiteral e baixa estrutura eclesial para a formação dos que mostravam o interesse pela vida eclesiástica.

Enfim, podemos afirmar que a interpretação que São Carlos Borromeu conseguiu implantar em sua diocese, foi suficiente, aliada à boa formação do seu clero, para fazer oposição à Reforma Protestante, mas não somente isso. Com a correta interpretação do que o concílio preconizou, com seguiu extirpar do meio do clero aqueles que se aliavam a teorias e teologias que enfraqueciam o estado clerical e a vida da Igreja. Incentivou a pastoral e a vida presbiteral como modelo de atenção aos mais pobres e aos doentes. O modo como interpretou em sua diocese o concílio trentino é modelo ainda hoje.

Em 04 de novembro de 1584 morreu em decorrência da peste que assolava Milão e que ele tanto ajudou a cuidar dos que eram abandonados na cidade com esta doença. Foi canonizado pelo Papa Paulo V em 1610. 

O Papa Bento XVI, referindo-se a ele, afirmou que “Sua figura se destaca no século XVI como modelo de pastor exemplar pela caridade, doutrina, zelo apostólico e sobretudo, pela oração. Dedicou-se por completo à Igreja ambrosiana: a visitou três vezes; convocou seis sínodos provinciais e onze diocesanos; fundou seminários para formar uma nova geração de sacerdotes; construiu hospitais e destinou as riquezas de família ao serviço dos pobres; defendeu os direitos da Igreja contra os poderosos; renovou a vida religiosa e instituiu uma nova Congregação de sacerdotes seculares, os Oblatos. (...) Seu lema consistia em uma só palavra: "Humilitas". A humildade o impulsionou, como o Senhor Jesus, a renunciar a si mesmo para fazer-se servo de todos".



O TESTEMUNHO DE VIDA PARA A CATEQUESE DO SEU REBANHO

Carlos Borromeu é o santo protetor dos catequistas e exemplo de intérprete de um concílio, modelo para a correta implantação pastoral das orientações eclesiásticas que, mesmo distantes da sede romana, eram exemplarmente vividas nos seminários e na vida cristã católica.
Vale lembrar que na época de reforma protestante, pouco a pouco já se foi alastrando a ideia de um Concílio ecumênico, e já que este parecia um meio radical para interromper, na base, os motivos de tantas críticas dos protestantes e no seio da Igreja, assim como para recompor a unidade da Igreja.

O Concílio fora convocado em Mântua, em 1537, mas, de adiamento em adiamento, acabou por começar somente em dezembro de 1545 na região de Trento. Pio IV, em janeiro de 1560, constituiu uma Comissão de reforma e inicia as providencias para a reabertura do Concílio. Carlos não está materialmente presente no Concílio, mas, com o coração, não se separa um só instante da solene assembleia. No final do Concílio, em 1564, é chamado para participar da Congregação de cardeais encarregados da interpretação dos decretos. E é aqui o ponto essencial para a interpretação e o sucesso do Concílio de Trento no meio da Igreja do séc. XVI.

No silêncio da meditação, lançou Carlos planos grandiosos para a reorganização da Igreja Católica. Estes todos se concentraram na ideia de concluir o Concílio de Trento com êxito e profundidade. De fato, era o que a Igreja mais necessitava, como base e fundamento da renovação e consolidação da vida religiosa. Por toda a parte surgiram abusos, sintomas indubitáveis de uma decadência deplorável e de uma perturbação bastante séria do regime eclesiástico. 

Podemos afirmar que Carlos foi uma força motriz no concílio e após o seu término. Pôs fim às caçadas, os banquetes, a vida luxuosa da clero. A cúria romana mudou radicalmente de aspecto: os padres circulavam vestidos de acordo com seu estado clerical e não mais com roupas de reconhecidos alfaiates italianos, que chegavam a custar centenas de moedas de ouro.  O clero então passou a manifestar exteriormente, pelas vestes, os sinais de uma renovação interior. Carlos afirmava: “Reformar-se para reformar.” Carlos quis ser o primeiro a executar as ordens da nova lei conciliar. Quanto mudou, em tão pouco tempo a vida de Carlos! Não veste mais roupas de seda, de veludo, se desfez das escuderias, carruagens. Um mês depois da chegada à Milão, como seu bispo, convocou o primeiro sínodo diocesano, cujo assunto principal era a reforma da vida clerical, de acordo com as determinações do Concílio Tridentino. 

O Concílio sofreu uma interrupção pela morte do Papa, chamado a Roma, assistiu ao tio na hora da morte (1572). No conclave que se reuniu, por ocasião da eleição do novo Papa, Carlos tomou parte. Visitou toda a sua diocese por pelo menos, três vezes. Não havia lugar, por menor que seja, que não o tivesse conhecido. No meio das fadigas da viagem (muitas vezes ele mesmo carregava a bagagem), conservava sempre o bom humor. Com os pobres, partilhava o pão dos pobres. Dias havia em que não tomava senão pão e água. Não só os católicos, mas também os próprios protestantes recebiam jubilosamente o “santo bispo”. O santo sentia-se embaraçado e magoado com tantos sinais de veneração; ele que havia escolhido para o próprio brasão o lema “Humilitas”, mas quando via que fiéis de todas as classes sociais se uniam a seu modesto séquito, recitando com ele as ladainhas e visitando as basílicas com admirável devoção, entendia que o Senhor se servia dele, que mesmo assim se julgava um servo tão indigno, para realizar coisas admiráveis. 

São Carlos está ainda convencido de que o remédio mais eficaz para a renovação da Igreja é a oração. Na cidade silenciosa, e quase totalmente paralisada pela peste, estendem-se devotas procissões penitenciais. Recita-se o rosário e o cardeal carrega uma grande cruz, caminhando de pés descalços. Carlos não fez pactos em catacumbas romanas para estar ao lado dos pobres. Ele simplesmente vivia no meio deles. Autenticamente cristão, vivia primeiro depois ensinava.

A peste ocasionou a fundação de um grande asilo para pobres. Além desta instituição, outros estabelecimentos de utilidade pública, devem a ele sua fundação. São Carlos escreveu ainda duas pastorais, uma intitulada “Reminiscências para o povo da cidade e do arcebispado de Milão, e instruções para todas as classes, para praticarem as virtudes da vida cristã”, e a outra: “Reminiscências dos dias dolorosos da peste”. 

Em outubro de 1582, Carlos dirige-se pela última vez a Roma. Gregório XIII recebeu Carlos, com as mais altas distinções. No entanto, Carlos continua com os mesmos costumes: às quatro horas da manhã encontra-se na Igreja, já em contemplação, e o povo se reúne com o santo par rezar com ele; ao meio dia espera-o o almoço, constituído de pão e água. Em compensação, os pobres, que àquela época povoavam os pátios de seu modesto aposento, recebem abundantes esmolas; à noite, após a oração propõe aos familiares algum tema de meditação para o dia seguinte. O descanso da noite não é muito longo, dorme de 3 ou 4 horas, estendido sobre uma caixa de sua capela. O restante do tempo passa em silenciosa prece, na capela da basílica. 

Carlos sente que, enfim, em sua lâmpada, sobrou pouco óleo, mas justamente por isso, intensifica a própria atividade. Em 15 de outubro ele inicia seus últimos exercícios espirituais, a partir do dia 22 têm fortes ataques de febre. Apesar do sofrimento celebra missa todos os dias. Dia 29 parte para Arona, para a inauguração do Colégio pontifício de Ascona. O cardeal dirige-se até lá numa embarcação na qual foi colocado para ele um colchão. Passa a noite rezando e falando aos barqueiros das coisas de Deus. São Carlos preside as cerimônias previstas, mas é necessário apressar sua volta a Milão. No caminho de volta, Carlos para novamente em Arona. Junto ao Colégio dos Jesuítas, por ele fundado, pouco distante de sua casa natal, celebra pela última vez. Chega a Milão a noitinha, de tanto em tanto, fecha os olhos. Não é para abandonar-se ao sono, mas somente para recolher-se mais profundamente. Carlos reabre os olhos para fixa-los na imagem do Cristo agonizante, que mandara colocar sobre um pequeno altar, aos pés do leito. Após ter recebido o viático e a unção dos enfermos, o arcebispo, sustentado por dois familiares, recolhe as últimas débeis forças para traçar com a mão um sinal de bênção sobre os presentes, e certamente, com o coração sobre todos os amados filhos.

Na noite de 3 de novembro de 1584 o cardeal Borromeo fecha os olhos à cena desta terra, para abri-los à contemplação do reino da luz. O “servo bom e fiel”, cumpria a obra que lhe havia sido confiada, pode entrar na alegria do teu Senhor.