sábado, 23 de novembro de 2019

O REINO DE DEUS JÁ ESTÁ NO MEIO DE VÓS. (Lc 17,21)



Inicialmente, para entendermos o que é o Reino de Deus, é preciso saber de onde veio esta expressão e quem formulou por primeiro este jeito de pensar a relação comunitária com Deus.

Israel nasceu da junção de várias etnias e vivia unido em pequenas comunidades. O Senhor Deus era o rei de Israel. Seu culto, bem simples, em altares de terra ou de pedras mal talhadas, era dirigido por anciões. Mas, ao ver que cada povo em volta tinha seu rei, pediram também ao profeta Samuel um rei: “Dá-nos um rei que nos governe, como o têm todas as nações”. (1Sm 8,4-5)

O Senhor manda Samuel atendê-los, embora com isso estejam rejeitando o reinado do Senhor, quando diz ao profeta: “Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não querem que eu reine sobre eles”. (1Sm 8,7-9)

Samuel previne o povo sobre os males que lhe advirão com a escolha de um rei, mas o povo não ouve suas advertências e que um rei mesmo assim. Então, o Senhor manda Samuel atendê-los. O primeiro rei foi Saul (1Sm 10,1). A seguir foi ungido Davi (1Sm 16,12-13). E, logo após seu filho, Salomão (1Rs 1,39). A partir daí, o culto foi centralizado pelo rei que agora cuidava do Templo aonde o povo tinha que acorrer. “E Davi disse: ´É aqui a casa do Senhor Deus e este o altar dos holocaustos de Israel’”. (1Cr 22,29)

O rei recebia vários títulos que lhe conferiam status semelhante à divindade: intocável, pastor do povo, senhor do universo, embora esta tradição já começa a ser aplicada ao futuro Messias, Jesus Cristo. Ele é Rei (Mt 2,2; Mt 27,42; Jo 1,49), mas o seu reino não é deste mundo. (Jo 18,33-38) Por isso não aceita ser aclamado rei dominador e terreno (Mt 4,9-10)

O Reino de Deus teve início com a instituição temporal e nacional do reino de Israel. Após o exílio da Babilônia, o Reino do Messias é considerado, numa ordem mais religiosa e espiritual, como uma era de paz e de justiça universais. Nosso Senhor elevará este Reino messiânico acima de toda perspectiva nacional e temporal: trata-se, acima de tudo, do Reino de Deus nas almas, de sua manifestação exterior nas almas e de sua consumação gloriosa no fim dos tempos.

O Reino de Deus é primeiramente todo o universo, em razão de sua criação e conservação.
O Reino de Deus é, de um modo especial, o povo de Israel, em razão de sua escolha.
O Reino de Deus é instaurado no NT, mediante a pregação da penitência e da conversão.

Ao Reino de Deus são chamados primeiramente os judeus e, depois, todos os homens e mulheres.
Este Reino tem uma fase temporal e outra eterna. É uma expressão que aparece nos livros mais recentes do AT, com no livro da Sabedoria e no livro de Daniel. Indica, desde o AT, a soberania de Deus nos seres humanos: Deus Reina, Deus é Rei.

No NT, a expressão Reino de Deus é mais presente nos evangelhos sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas. É o tema central da pregação de Jesus. É ilustrado com muitas parábolas e anunciado como uma realidade já presente “O reino de Deus já está no meio de vós” (Lc 17,21). O cumprimento pleno será na escatologia, nos últimos tempos da vinda de Jesus. Até lá, Deus precisa reinar em mim.

Isso inquietou São Bernardo de Claraval (1090-1153), um monge do Séc. XII, quando diz que a meta da vida cristã não é a visão de Deus aqui na terra, pois ele sabe que isso está reservado para o céu. Nem tampouco perseverar na fé “conhecendo” a Deus através da intelectualidade ou dos dogmas. Para conhecer a Deus, é preciso que ele venha ao nosso encontro. E para isso São Bernardo tem uma direção certa.

Antes dele, os cristãos falavam de duas vindas de Cristo. A primeira foi a vinda humilde e histórica na Encarnação. A segunda será o seu retorno glorioso, que porá fim à história tal como nós a conhecemos e que inaugurará um novo céu e uma nova terra. Mas, onde é que Cristo está neste espaço de tempo intermediário entre a Ascenção e a Parusia?

São Leão Magno (400-461 d.C.) afirmou num sermão sobre a Ascenção, que no dia de sua exaltação ao céu “sua presença visível passou para os sacramentos”. Cristo não está mais disponível aos nossos sentidos corporais, mas está presente à nossa fé. Foca-se então na divindade de Cristo, de modo que intensifiquemos a fé nele. Os sacramentos são sinais e mistério de sua presença no nosso meio.
São Bernardo acreditava que não é mais possível relacionar-se com Cristo da mesma forma que os discípulos nos bons e velhos tempos da Galileia. Este modo nos poderia desfazer a nossa salvação, uma vez que Cristo nos redimiu precisamente por sua Morte, Ressurreição e Ascenção.

Mas como Jesus poderia se relacionar com a pessoa humana, então? Ele mesmo disse: “Se alguém me ama, guardará minha palavra, e meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos nele nossa morada. (Jo 14,23) Jesus havia prometido habitar naqueles que o obedeciam. De igual modo, em Mateus, suas últimas palavras são: “E eis que estarei convosco até o fim do mundo” (Mt 28,20) É promessa divina, portanto, realizável de fato. Jesus está conosco, ele é Verdade e fala a verdade.

Mas Jesus vem a nós de forma humilde, próxima, como um amigo. Mas um amigo cuja presença nos traz sentimentos de temor reverencial. Vem para iluminar nossas mentes e corações. Nossas decisões e atitudes. Ele vem a nós interiormente, não “lado a lado”, como um ser humano para o outro. Vem na intimidade do dois-em-um. Como duas almas num só corpo, como duas pessoas numa só carne. Conosco Ele quer ser um só. Amigo, Deus-Presença. “Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. (Mt 11,27)

A possibilidade de se relacionar com Jesus que São Bernardo nos apresenta, no aqui e agora, memória e presença, encontro e despedida, nos torna mais atentos à presença de Cristo em nós, nos nossos irmãos, na Igreja, nos sacramentos. Não nos afasta da realidade, mas a torna objetiva.

Na vida sacramental que encontramos Jesus presente em nosso meio. Nos sacramentos, o Espírito Santo de Deus vem fazer morada em nós de uma forma que nos faz acolher Deus verdadeiramente, como nosso Rei. É em nós que ele quer reinar. Ele também percebeu que obedecer a Deus depende claramente da imagem que fazemos de nós mesmos e de Deus.

São Bernardo entendeu, primeiramente, que para um grande número de pessoas de seu tempo, Deus era Senhor e a criatura, escravo, servo. Não importava a classe de pessoa. Mesmo se fosse o rei terreno: Deus era “Rei dos reis”. Não importava se fosse um senhor feudal. Deus era o “Senhor dos senhores”. Portanto, neste estágio, a obediência a Deus era pelo medo. Medo com uma boa mistura de ressentimento: ai de mim se não obedecer a Deus. O castigo seria terrível.

Enquanto refletia sobre este grupo, percebeu que havia um outro grupo de pessoas, para os quais Deus não era um senhor terrível, mas um rico Senhor, para o qual se poderia conseguir algum lucro. Pensava-se: paciência. Podemos suportá-lo, pois Ele nos dará algo que bem merecemos! Dele ganharemos dinheiro, prosperidade, saúde, bens, sucesso, vida longa. Sim, o obedeceremos, mas não se esqueça da sua generosidade. São Bernardo os chamava este grupo de mercenários!

Ele identificou, por fim, um terceiro e último grupo. Os integrantes viam Deus como um Pai. Não negavam seu poder. Não negavam sua abundância infinita. Mas percebiam que nem o poder, nem as riquezas eram características determinantes de Deus. Mas Deus era um Pai tão autêntico, que fazia o sol brilhar para os justos e os injustos, e a chuva cair sobre os gratos e os ingratos. Que cuidava de suas criaturas, de cada fio de cabeço, de cada pássaro do céu. Era um Deus benevolente.

Entretanto, o impressionava que este terceiro grupo não gerou esta imagem a partir de si mesmos. Antes, receberam por Revelação da realidade de Deus na Pessoa, nas palavras, nos gestos e no destino de Jesus Cristo. Ora, se Deus é Pai, então eu devo ser seu filho. Minha obediência não requer segundas intenções: medo ou privilégios. Trata-se de uma resposta espontânea à bondade de um Pai que continuamente experimento em minha vida. Esta obediência, portanto, se baseia numa experiência de relacionamento com Deus, na comunidade. Aqui o que conta não é evitar sua ira ou obter seus benefícios, mas conta simplesmente a alegria de perseverar indefinidamente, na relação com Deus, meu Rei, meu Senhor e meu Pai: “Minha alegria é fazer a vossa vontade”. (Sl 118,16)

Nenhum comentário:

Postar um comentário