Inicialmente, para
entendermos o que é o Reino de Deus, é preciso saber de onde veio esta
expressão e quem formulou por primeiro este jeito de pensar a relação
comunitária com Deus.
Israel nasceu da junção de
várias etnias e vivia unido em pequenas comunidades. O Senhor Deus era o rei de
Israel. Seu culto, bem simples, em altares de terra ou de pedras mal talhadas,
era dirigido por anciões. Mas, ao ver que cada povo em volta tinha seu rei,
pediram também ao profeta Samuel um rei: “Dá-nos um rei que nos governe, como o
têm todas as nações”. (1Sm 8,4-5)
O Senhor manda Samuel
atendê-los, embora com isso estejam rejeitando o reinado do Senhor, quando diz
ao profeta: “Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não querem que eu
reine sobre eles”. (1Sm 8,7-9)
Samuel previne o povo sobre
os males que lhe advirão com a escolha de um rei, mas o povo não ouve suas
advertências e que um rei mesmo assim. Então, o Senhor manda Samuel atendê-los.
O primeiro rei foi Saul (1Sm 10,1). A seguir foi ungido Davi (1Sm 16,12-13). E,
logo após seu filho, Salomão (1Rs 1,39). A partir daí, o culto foi centralizado
pelo rei que agora cuidava do Templo aonde o povo tinha que acorrer. “E Davi
disse: ´É aqui a casa do Senhor Deus e este o altar dos holocaustos de
Israel’”. (1Cr 22,29)
O rei recebia vários títulos
que lhe conferiam status semelhante à divindade: intocável, pastor do povo,
senhor do universo, embora esta tradição já começa a ser aplicada ao futuro
Messias, Jesus Cristo. Ele é Rei (Mt 2,2; Mt 27,42; Jo 1,49), mas o seu reino
não é deste mundo. (Jo 18,33-38) Por isso não aceita ser aclamado rei dominador
e terreno (Mt 4,9-10)
O Reino de Deus teve início com a instituição temporal e nacional do
reino de Israel. Após o exílio da Babilônia, o Reino do Messias é considerado,
numa ordem mais religiosa e espiritual, como uma era de paz e de justiça
universais. Nosso Senhor elevará este Reino messiânico acima de toda
perspectiva nacional e temporal: trata-se, acima de tudo, do Reino de Deus nas
almas, de sua manifestação exterior nas almas e de sua consumação gloriosa no
fim dos tempos.
O Reino de Deus é primeiramente todo o universo, em razão de sua
criação e conservação.
O Reino de Deus é, de um modo especial, o povo de Israel, em razão de
sua escolha.
O Reino de Deus é instaurado no NT, mediante a pregação da penitência e
da conversão.
Ao Reino de Deus são chamados primeiramente os judeus e, depois, todos
os homens e mulheres.
Este Reino tem uma fase
temporal e outra eterna. É uma expressão que aparece nos livros mais recentes
do AT, com no livro da Sabedoria e no livro de Daniel. Indica, desde o AT, a
soberania de Deus nos seres humanos: Deus Reina, Deus é Rei.
No NT, a expressão Reino de
Deus é mais presente nos evangelhos sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas. É o tema
central da pregação de Jesus. É ilustrado com muitas parábolas e anunciado como
uma realidade já presente “O reino de Deus já está no meio de vós” (Lc 17,21).
O cumprimento pleno será na escatologia, nos últimos tempos da vinda de Jesus. Até
lá, Deus precisa reinar em mim.
Isso inquietou São Bernardo de Claraval (1090-1153), um
monge do Séc. XII, quando diz que a meta da vida cristã não é a visão de Deus
aqui na terra, pois ele sabe que isso está reservado para o céu. Nem tampouco perseverar
na fé “conhecendo” a Deus através da intelectualidade ou dos dogmas. Para
conhecer a Deus, é preciso que ele venha ao nosso encontro. E para isso São
Bernardo tem uma direção certa.
Antes dele, os cristãos
falavam de duas vindas de Cristo. A primeira foi a vinda humilde e histórica na
Encarnação. A segunda será o seu retorno glorioso, que porá fim à história tal
como nós a conhecemos e que inaugurará um novo céu e uma nova terra. Mas, onde é que Cristo está neste espaço de
tempo intermediário entre a Ascenção e a Parusia?
São Leão Magno (400-461 d.C.) afirmou num sermão sobre a Ascenção, que no dia de sua
exaltação ao céu “sua presença visível passou para os sacramentos”. Cristo não
está mais disponível aos nossos sentidos corporais, mas está presente à nossa
fé. Foca-se então na divindade de Cristo, de modo que intensifiquemos a fé
nele. Os sacramentos são sinais e mistério de sua presença no nosso meio.
São Bernardo acreditava que
não é mais possível relacionar-se com Cristo da mesma forma que os discípulos
nos bons e velhos tempos da Galileia. Este modo nos poderia desfazer a nossa
salvação, uma vez que Cristo nos redimiu precisamente por sua Morte,
Ressurreição e Ascenção.
Mas como Jesus poderia se relacionar com a pessoa humana, então? Ele mesmo disse: “Se alguém
me ama, guardará minha palavra, e meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos
nele nossa morada. (Jo 14,23) Jesus havia prometido habitar naqueles que o
obedeciam. De igual modo, em Mateus, suas últimas palavras são: “E eis que
estarei convosco até o fim do mundo” (Mt 28,20) É promessa divina, portanto,
realizável de fato. Jesus está conosco, ele é Verdade e fala a verdade.
Mas Jesus vem a nós de forma
humilde, próxima, como um amigo. Mas um amigo cuja presença nos traz
sentimentos de temor reverencial. Vem para iluminar nossas mentes e corações.
Nossas decisões e atitudes. Ele vem a nós interiormente, não “lado a lado”,
como um ser humano para o outro. Vem na intimidade do dois-em-um. Como duas almas num só corpo, como duas pessoas numa só
carne. Conosco Ele quer ser um só. Amigo, Deus-Presença. “Ninguém conhece o
Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e aquele a quem o
Filho o quiser revelar”. (Mt 11,27)
A possibilidade de se
relacionar com Jesus que São Bernardo nos apresenta, no aqui e agora, memória e
presença, encontro e despedida, nos torna mais atentos à presença de Cristo em
nós, nos nossos irmãos, na Igreja, nos sacramentos. Não nos afasta da
realidade, mas a torna objetiva.
Na vida sacramental que encontramos Jesus presente em nosso meio. Nos sacramentos, o
Espírito Santo de Deus vem fazer morada em nós de uma forma que nos faz acolher
Deus verdadeiramente, como nosso Rei. É em nós que ele quer reinar. Ele também
percebeu que obedecer a Deus depende claramente da imagem que fazemos de nós
mesmos e de Deus.
São Bernardo entendeu,
primeiramente, que para um grande número de pessoas de seu tempo, Deus era Senhor e a criatura, escravo,
servo. Não importava a classe de pessoa. Mesmo se fosse o rei terreno: Deus
era “Rei dos reis”. Não importava se fosse um senhor feudal. Deus era o “Senhor
dos senhores”. Portanto, neste estágio, a obediência a Deus era pelo medo. Medo com uma boa mistura de
ressentimento: ai de mim se não obedecer a Deus. O castigo seria terrível.
Enquanto refletia sobre este
grupo, percebeu que havia um outro grupo de pessoas, para os quais Deus não era
um senhor terrível, mas um rico Senhor,
para o qual se poderia conseguir algum lucro. Pensava-se: paciência. Podemos
suportá-lo, pois Ele nos dará algo
que bem merecemos! Dele ganharemos dinheiro, prosperidade, saúde, bens,
sucesso, vida longa. Sim, o obedeceremos, mas não se esqueça da sua
generosidade. São Bernardo os chamava este grupo de mercenários!
Ele identificou, por fim, um
terceiro e último grupo. Os integrantes viam Deus como um Pai. Não negavam seu poder. Não negavam sua abundância
infinita. Mas percebiam que nem o poder, nem as riquezas eram características
determinantes de Deus. Mas Deus era um Pai tão autêntico, que fazia o sol
brilhar para os justos e os injustos, e a chuva cair sobre os gratos e os
ingratos. Que cuidava de suas criaturas, de cada fio de cabeço, de cada pássaro
do céu. Era um Deus benevolente.
Entretanto, o impressionava
que este terceiro grupo não gerou esta
imagem a partir de si mesmos. Antes, receberam
por Revelação da realidade de Deus na Pessoa, nas palavras, nos gestos e no
destino de Jesus Cristo. Ora, se Deus é Pai, então eu devo ser seu filho. Minha
obediência não requer segundas intenções: medo ou privilégios. Trata-se de uma
resposta espontânea à bondade de um Pai que continuamente experimento em minha
vida. Esta obediência, portanto, se baseia numa experiência de relacionamento
com Deus, na comunidade. Aqui o que conta não é evitar sua ira ou obter seus
benefícios, mas conta simplesmente a alegria de perseverar indefinidamente, na
relação com Deus, meu Rei, meu Senhor e meu Pai: “Minha alegria é fazer a vossa
vontade”. (Sl 118,16)
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