quarta-feira, 2 de agosto de 2017

O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS – uma investigação da verdadeira missão de Jesus.


São Lucas Evangelista (1602-1605), El Greco, na Catedral de Toledo (Espanha)

O que vai transformar a vida das comunidades em torno da experiência da ressurreição de Jesus será, de uma forma ampliada, aquela maneira com que Lucas aposta na missão evangélica e na pregação: a todos é manifestada a verdade do Pai. Escrito a partir da ótica de quem não estava ligado à pedagogia da comunidade judia, mas às diversidades de manifestações religiosas do mundo grego, o evangelista traz à tona uma das maiores mensagens que Jesus Cristo trouxe ao mundo. Pela sua encarnação, Ele manifesta a todos nós que, embora estejamos cercados dos males deste mundo, não é possível que permaneçamos em atitude de exclusão, mas nos impele a procurar “salvar o que estava perdido” (19,10). A lógica da exclusão serve como uma luva àqueles que querem desviar todos do verdadeiro caminho. Inverter a lógica de uma sociedade fundamentada na dialética excludente, alicerçada numa cultura que promove a indiferença, pode ter sérios comprometimentos com a atualização da mensagem evangélica.

O livro de Lucas, propriamente, o Evangelho, é a primeira parte de uma obra em dois volumes, que busca fundamentar no primeiro, aquilo que se repercute de forma ágil e firme no segundo. É importante saber por que as comunidades investiram no seguimento de Jesus, a partir da pregação do apóstolo Paulo. É preciso aqui ter em mente que as comunidades queriam, de forma contundente, demonstrar que a história pode ser transformada pela mensagem de Jesus. E pode ser de maneira decisiva, que ultrapassa o tempo e o espaço e pode penetrar como fermento na massa, tudo modificando, tudo transformando com vida nova, fazendo discípulos de Jesus.

Mas Lucas inicia de maneira peculiar sua proposta de anúncio do Messias, colocando Jesus na Sinagoga, de onde ele falava de muitas formas ao longo de sua vida pública. Lá é onde encontrará na Lei, nos Profetas e nos Escritos, sua missão de forma mais atraente a todos os que são chamados à Nova Vida, mas em especial, àqueles que aceitam sua mensagem salvífica. De modo ainda muito especial, àqueles que, alheios ao cumprimento da antiga Lei e desconhecendo os limites e as distinções que levam o ser humano ao isolamento em uma única forma de salvação, estabelecem na observância do Evangelho, na fé em Jesus Cristo, o mistério profundo da salvação.

Ora, Jesus entra na sinagoga de Nazaré para ler Isaías 61, 1-2. Assim, agora todos conhecem que nele se encontra a porta que abre para o novo. Uma nova esperança para todo o povo, especialmente os pobres. Por fim, Jesus é o ungido. O Espírito do Senhor está sobre ele e o cumprimento da escritura aconteceu na plenitude dos tempos, agora, hoje, aqui. Portanto, a partilha torna-se plenitude de sua mensagem. Esta nova história que Jesus forma com seus discípulos e todos aqueles que o seguirão ao longo dos séculos, será exigente e não deixará que qualquer experiência alheia ao Evangelho, impeça a liberdade daqueles que aceitam plenamente a mensagem de Jesus. Libertar o ser humano de práticas não condizentes com a Boa Nova, de toda violência e práticas discriminatórias, poderá, enfim, ser o final libertador e salvador.

O propósito de Lucas (Cl 4,14; Fm 24) como autor dos dois livros, encerra uma nova experiência na comunidade. Era preciso, além de mostrar a trajetória de Jesus na Galileia, na Samaria e na Judeia (precisamente em Jerusalém), podemos demostrar como a Samaria ocupará o lugar central do perfil do evangelista, assim como a instituição da Eucaristia será janela por onde poderemos vislumbrar todo o conteúdo da mensagem lucana: a salvação veio para todos.

O cumprimento da Lei (4, 16), é demostrado no início do capítulo 4: era costume dele ir à sinagoga em dia de Sábado. Entretanto, Jesus vai apontar uma nova ordem que, dentro de uma atitude profética, esboça seu programa de vida. Realmente ali, ele quis se revelar aos seus conhecidos, de forma clara e profunda. É o Espírito do Senhor que o autoriza a iniciar sua missão de pregar, a todos os povos, um mandato libertador. As comunidades que liam o evangelho de Lucas, buscavam viver sob a ação do Espírito e realizar sua missão a partir da fonte e testemunho da palavra de Jesus. O Messias tem a autoridade revelada pelo Pai para, em seu nome, fundar um novo tempo. Ele independe da vontade do Templo, que naquela época era assumidamente local da realização de uma teologia fundada na lógica da retribuição a partir da vivência de normas estabelecidas ao longo da história do povo escolhido. Jesus contradiz esta postura cercante e abre as portas para um novo modo de pensar a vivência da Lei. Ele não está alheio às memórias que perpassam o espaço social, cultural e religioso de sua época, mas não para nestas tradições.

O destaque que o autor começa a apresentar é a forma com que Jesus vai anunciar a Boa Nova do Reino de Deus. O Pai é quem lhe dá a autonomia e o apoia nesta missão, ungindo-o. Ali naquele dia, a comunidade conhece que este Messias não será aquele que por vezes foi anunciado: o libertador social e político. Era o Desejado das Nações. Era além de Israel. Era para mais do povo escolhido. Os pobres são os destinatários de sua mensagem. Os prisioneiros, todos aqueles que estão aprisionados em suas metáforas sociais que os impede de ver e ouvir a mensagem de salvação, são agora destinatários da salvação vinda de Deus. As formas de pensar, para Lucas, o que hoje podemos chamar de arquétipos ou esquemas mentais, são contornos que impedem de aceitar livremente a mensagem. Estas formas de pensar impedem o convívio sadio nas comunidades de todos os tempos, não somente àquelas para as quais foram escritos os textos lucanos. Por fim, os cegos, aqui entendidos como aqueles que não querem ver. Alheios em responder à sua missão nas comunidades, se isolam na prática da injustiça, manipulando a religião e esforçando-se a impedir que outros possam ouvir e crer. Mas, longe de os excluir, Jesus traz a todos a cura e a Vida Nova em uma observância que vá além das aparências e cure o coração.

Na sinagoga ele estabelece o que Jesus irá desenvolver ao longo de sua missão. É preciso trazer ao homem, agora, um novo tempo e um tempo da graça plena do Senhor. Um ano favorável em que se possa esperar melhores condições para ouvir a mensagem de salvação. É preciso reiniciar tudo de novo e do começo. É preciso acreditar que o homem e a mulher poderão entender, de forma razoável, àquilo que é imprescindível para uma nova mentalidade de libertação de cada um e do povo como discípulos seguidores de Jesus Cristo. Nele, pode-se afirmar, o evangelista demostra que, a partir da conversão e da penitência, o pecador pode apoiar-se em acreditar que é possível reiniciar numa nova perspectiva salvífica: o Reino de Deus é o Reio da Graça, da benção, da superação de tudo aquilo que impede de o ser humano desenvolver-se otimamente rumo ao seu Criador e Pai.

Assim, aqui o autor quer mostrar um novo conceito social, político, cultural e religioso. De forma análoga, não era possível que a mensagem de Jesus encontrasse esta sociedade alienada em sua maneira anacrônica de pensar e fosse transformada por sua pregação. Era preciso que cada um entendesse e confiasse naquela mensagem transformadora que Jesus anunciará com toda ênfase e firmeza a todos quantos quiserem o seguir. O convite será feito de muitas formas diferentes, mas a mensagem de transformação da vida, numa nova proposta e numa etapa ainda mais exigente será o elo no qual se apoiará a mensagem lucana aos povos de origem grega, especialmente àqueles oriundos das comunidades fundadas por Paulo em suas viagens.

Por fim, esta passagem tem um dos mais importantes termos do Novo Testamento. Destaca a atualidade da mensagem salvífica e assume a dimensão temporal de maneira a gerar um dinamismo próprio daqueles que foram ungidos e batizados. É no hoje (4, 21), o kairoj em que se apoiará a mensagem paulina de forma contundente. É preciso que a conversão aconteça hoje e não se espere por algo que ainda poderá vir, mas se creia na Boa Nova de Jesus Cristo e naquele que o enviou ao mundo, Deus Pai. O texto confirma o tempo favorável da ação de Deus. Para os que esperavam o Tempo Messiânico, a palavra objetiva de Jesus serviu como um conforto. Mas os que detinham o poder viam sua supremacia ideológica misteriosamente usurpada e profanada e buscavam deter o entusiasmo daqueles que acreditavam: Não é este o filho de José? (4, 22). Neste cenário, Jesus demostra sua missão como aquela em que os mais humildes poderão, finalmente, sentirem a presença de um Deus que é misericórdia e compaixão.

A oposição a Jesus vai se tornar cada vez maior à medida em que ele vai avançando sobre os pilares estabelecidos pela velha oligarquia sagrada que a tudo normatizava em conformidade com os seus interesses antagônicos. Jesus vai estabelecer, em Lucas, uma mensagem para os de fora, em oposição aos de dentro. Pode-se compreender porque que estes temas voltarão a perpassar diversas perícopes do texto lucano. Era agora necessário um tempo de favorecimento incondicional aos pobres, àqueles que aceitaram a mensagem salvadora e àqueles que se confrontavam diante das opressões a que eram submetidos, mas que nem por isso alienavam-se na crença de que aos pobres era necessário o sofrimento e aos escolhidos, as graças.

Por fim, o início da missão de Jesus, após o batismo, o testemunho na sinagoga, a pregação na periferia de Cafarnaum era o modelo da ação que o discípulo deveria entrever na sua realidade cultural, especialmente começando por Jerusalém (24, 47), mas não parando por aí. Indo até confins do mundo (Atos 1,8), pregando uma nova esperança a todos os que desistiram de buscar forças para uma nova vida alicerçada no Espírito Santo.

Do deserto a Nazaré e Cafarnaum, Lucas vai baseando a vida de Jesus na sua autoridade, que vem do Pai (3, 22) e que a todos toma de espanto, por suas obras que certificam a vinda do Reino (4, 36). Ao sair da sinagoga de Cafarnaum, cidade em que morava, entra na casa de Simão, onde realiza muitas curas. Sua filiação divina é revelada. Mas não para onde está. Caminha sempre pois o Reino se faz caminhando. É na vida e na história que a realidade salvífica do novo Povo de Deus se realiza. Sair da própria terra, de seu convívio pessoal, como exemplo dado pelo próprio Jesus, é essencial para que a mensagem evangélica possa adentrar nos mais diversos povos de maneira eficaz e atual. É preciso fazer este caminho. E este movimento independe de qualquer limitador externo, posição social, condições pessoais ou ideologias. É um acompanhar o caminho que nos faz seguidores.

O caminho que Jesus convida em Lucas é o caminho daqueles que perguntam: o que devemos fazer? O Filho de Adão, é o Filho de Deus e ajuda a sair dos fundamentalismos fracassados de todos os tempos. A realização de Jesus com o poder, deixa claro aos discípulos como deverão se comportar diante dos poderosos. O poder econômico, o poder político e o poder religioso da época de Jesus, não puderam compreender a opção do nazareno. É em vista de sua honestidade e obediente escolha por cumprir a vontade do Pai, que Jesus faz a opção por aquilo que acredita e que se apresenta diante dele em sua missão. Os discípulos não poderão escolher outro caminho se quiserem compreender e viver a mensagem evangélica. Convidados à partilha, à oração e à vida no Espírito, a comunidade que lê o texto de Lucas, moradores da cidade, ricos e pobres, o cântico de Maria, mãe de Jesus, como o anúncio plenificado da mensagem realizada. Subverte a estrutura social e exalta os humildes, enquanto derruba dos ricos de seus tronos. O único reino que não terá fim será o de Jesus. Mas isso somente entenderão que compreender o lugar do próximo na organização da comunidade. Assim, a prática cristã é baseada numa nova prática que Lucas quer deixar bem claro nos seus dois livros. Não é possível acreditar em Jesus Cristo e manter-se nos limites das injustas relações em favor da injustiça. Em sintonia com sua missão, Jesus observa a abrangência ímpar da mensagem do Reino e estabelece nas comunidades uma nova partilha simbolizada no dito tudo o que é meu, é teu (15,31) e atualiza aquele designo temporal kairológico. Afinal, não era mais possível que a comunidade esperasse pela segunda vinda de Jesus como algo quase que imediato ao anúncio da Palavra e à conversão. Era necessário que a comunidade vivesse agora o ideal da partilha e da justiça, dentro da casa e na diversidade de membros. A experiência da ressurreição faz com que os discípulos abram a sua casa para que ele possa adentrar. O medo não mais deve acompanhar o discípulo. Ele sabe que por acreditar em Jesus sofrerá perseguições. Entretanto, é preciso que sua fé esteja no mundo como sal e fermento e consiga, pelo testemunho, atrair outros mais ao seguimento do Mestre.

Após a ressurreição, era preciso que a comunidade reconhecesse Jesus na partilha e na solidariedade. Era preciso voltar à Jerusalém e recolocar-se no caminho, como bem fizeram os Discípulos de Emaús (24, 13-35). O projeto de Jesus continua vivo e atuante na comunidade. É preciso trazer o cristão para o centro. Para a cidade, para o desafio da pregação em meio às crises do caminho. Assumindo o medo, o convertido vai além do conformismo com a condição em que se encontra a sociedade e sua família. Lucas mostra muito bem que no caminho e nas travessias, as tempestades e as dificuldades no caminho são permanentes. Todavia, é neste caminho que acontecem curas, conversões e novos se aproximam do Mestre para ouvi-lo e lhe falar. Era preciso tocar a lepra. Era preciso ir para além do Templo. Era preciso apresentar um novo tempo e uma nova esperança, alicerçada na misericórdia e na concordância ao Evangelho.

O evangelista no texto de Lucas apresenta um Jesus, que é o Cristo (1, 32; 22, 67), o Filho de Deus (1, 35; 22, 70), o Profeta (4, 24; 13, 33), o Salvador (2, 11), o Servo (2, 43; 3, 22) e o Rei (22, 28.30). Para os povos que o conheceram sem terem antes conhecido a Lei e os profetas, foi uma maneira autêntica de trazer os fundamentos da fé e confirma-los na pessoa de Jesus, como cumprimento da promessa do Pai. Ele é o Cristo, o Filho de Deus e o Senhor. Sob este tripé, a obra lucana estabelecerá a seus leitores, especialmente de origem grega, distantes do conhecimento judaico, as bases onde se fundamenta a pessoa de Jesus como Profeta, Salvador, Rei e Servo. Este Jesus profeta vem numa cristologia corajosa, ativa que reflete a concordância da comunidade de que Jesus estava presente na missão. A comunidade então torna-se dom e lugar exemplar onde acontece a partilha, o trabalho e a justiça querida por Deus. Esta comunidade entende-se misericordiosa e tem a coragem de estar com o irmão e o tornar senhor de sua história e pai de um novo povo. É esta virtude moral que impõe à sociedade e à comunidade, princípios éticos e sociais que interpelam para uma escatologia presente no kairoj dinâmico e exigente de uma eclesiologia que ultrapassa velhas posturas e é dirigida a todos os que são amigos de Deus. 

A comunidade percebe que, por suas forças, não poderá viver o Evangelho. É preciso uma força do alto (24,49) que os impelirá a proclamar um tempo novo, que mudará o mundo. 

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