São Lucas Evangelista (1602-1605), El Greco, na Catedral de Toledo (Espanha).
O que vai transformar a
vida das comunidades em torno da experiência da ressurreição de Jesus será, de
uma forma ampliada, aquela maneira com que Lucas aposta na missão evangélica e
na pregação: a todos é manifestada a verdade do Pai. Escrito a partir da ótica
de quem não estava ligado à pedagogia da comunidade judia, mas às diversidades
de manifestações religiosas do mundo grego, o evangelista traz à tona uma das
maiores mensagens que Jesus Cristo trouxe ao mundo. Pela sua encarnação, Ele
manifesta a todos nós que, embora estejamos cercados dos males deste mundo, não
é possível que permaneçamos em atitude de exclusão, mas nos impele a procurar
“salvar o que estava perdido” (19,10). A lógica da exclusão serve como uma luva
àqueles que querem desviar todos do verdadeiro caminho. Inverter a lógica de
uma sociedade fundamentada na dialética excludente, alicerçada numa cultura que
promove a indiferença, pode ter sérios comprometimentos com a atualização da
mensagem evangélica.
O livro de Lucas,
propriamente, o Evangelho, é a primeira parte de uma obra em dois volumes, que
busca fundamentar no primeiro, aquilo que se repercute de forma ágil e firme no
segundo. É importante saber por que as comunidades investiram no seguimento de
Jesus, a partir da pregação do apóstolo Paulo. É preciso aqui ter em mente que
as comunidades queriam, de forma contundente, demonstrar que a história pode
ser transformada pela mensagem de Jesus. E pode ser de maneira decisiva, que
ultrapassa o tempo e o espaço e pode penetrar como fermento na massa, tudo
modificando, tudo transformando com vida nova, fazendo discípulos de Jesus.
Mas Lucas inicia de
maneira peculiar sua proposta de anúncio do Messias, colocando Jesus na Sinagoga,
de onde ele falava de muitas formas ao longo de sua vida pública. Lá é onde
encontrará na Lei, nos Profetas e nos Escritos, sua missão de forma mais
atraente a todos os que são chamados à Nova Vida, mas em especial, àqueles que
aceitam sua mensagem salvífica. De modo ainda muito especial, àqueles que,
alheios ao cumprimento da antiga Lei e desconhecendo os limites e as distinções
que levam o ser humano ao isolamento em uma única forma de salvação,
estabelecem na observância do Evangelho, na fé em Jesus Cristo, o mistério
profundo da salvação.
Ora, Jesus entra na sinagoga
de Nazaré para ler Isaías 61, 1-2. Assim, agora todos conhecem que nele se
encontra a porta que abre para o novo. Uma nova esperança para todo o povo,
especialmente os pobres. Por fim, Jesus é o ungido. O Espírito do Senhor está
sobre ele e o cumprimento da escritura aconteceu na plenitude dos tempos,
agora, hoje, aqui. Portanto, a partilha torna-se plenitude de sua mensagem.
Esta nova história que Jesus forma com seus discípulos e todos aqueles que o
seguirão ao longo dos séculos, será exigente e não deixará que qualquer
experiência alheia ao Evangelho, impeça a liberdade daqueles que aceitam
plenamente a mensagem de Jesus. Libertar o ser humano de práticas não
condizentes com a Boa Nova, de toda violência e práticas discriminatórias,
poderá, enfim, ser o final libertador e salvador.
O propósito de Lucas (Cl 4,14; Fm 24) como
autor dos dois livros, encerra uma nova experiência na comunidade. Era preciso,
além de mostrar a trajetória de Jesus na Galileia, na Samaria e na Judeia
(precisamente em Jerusalém), podemos demostrar como a Samaria ocupará o lugar
central do perfil do evangelista, assim como a instituição da Eucaristia será janela
por onde poderemos vislumbrar todo o conteúdo da mensagem lucana: a salvação
veio para todos.
O cumprimento da Lei (4,
16), é demostrado no início do capítulo 4: era costume dele ir à sinagoga em dia de Sábado. Entretanto, Jesus vai
apontar uma nova ordem que, dentro de uma atitude profética, esboça seu
programa de vida. Realmente ali, ele quis se revelar aos seus conhecidos, de
forma clara e profunda. É o Espírito do Senhor que o autoriza a iniciar sua
missão de pregar, a todos os povos, um mandato libertador. As comunidades que
liam o evangelho de Lucas, buscavam viver sob a ação do Espírito e realizar sua
missão a partir da fonte e testemunho da palavra de Jesus. O Messias tem a
autoridade revelada pelo Pai para, em seu nome, fundar um novo tempo. Ele
independe da vontade do Templo, que naquela época era assumidamente local da
realização de uma teologia fundada na lógica da retribuição a partir da
vivência de normas estabelecidas ao longo da história do povo escolhido. Jesus
contradiz esta postura cercante e abre as portas para um novo modo de pensar a
vivência da Lei. Ele não está alheio às memórias que perpassam o espaço social,
cultural e religioso de sua época, mas não para nestas tradições.
O destaque que o autor
começa a apresentar é a forma com que Jesus vai anunciar a Boa Nova do Reino de
Deus. O Pai é quem lhe dá a autonomia e o apoia nesta missão, ungindo-o. Ali naquele
dia, a comunidade conhece que este Messias não será aquele que por vezes foi
anunciado: o libertador social e político. Era o Desejado das Nações. Era além
de Israel. Era para mais do povo escolhido. Os pobres são os destinatários de
sua mensagem. Os prisioneiros, todos aqueles que estão aprisionados em suas
metáforas sociais que os impede de ver e ouvir a mensagem de salvação, são
agora destinatários da salvação vinda de Deus. As formas de pensar, para Lucas,
o que hoje podemos chamar de arquétipos ou esquemas mentais, são contornos que
impedem de aceitar livremente a mensagem. Estas formas de pensar impedem o
convívio sadio nas comunidades de todos os tempos, não somente àquelas para as
quais foram escritos os textos lucanos. Por fim, os cegos, aqui entendidos como
aqueles que não querem ver. Alheios em responder à sua missão nas comunidades,
se isolam na prática da injustiça, manipulando a religião e esforçando-se a
impedir que outros possam ouvir e crer. Mas, longe de os excluir, Jesus traz a
todos a cura e a Vida Nova em uma observância que vá além das aparências e cure
o coração.
Na sinagoga ele
estabelece o que Jesus irá desenvolver ao longo de sua missão. É preciso trazer
ao homem, agora, um novo tempo e um tempo da graça plena do Senhor. Um ano favorável em que se possa esperar
melhores condições para ouvir a mensagem de salvação. É preciso reiniciar tudo
de novo e do começo. É preciso acreditar que o homem e a mulher poderão
entender, de forma razoável, àquilo que é imprescindível para uma nova
mentalidade de libertação de cada um e do povo como discípulos seguidores de
Jesus Cristo. Nele, pode-se afirmar, o evangelista demostra que, a partir da
conversão e da penitência, o pecador pode apoiar-se em acreditar que é possível
reiniciar numa nova perspectiva salvífica: o Reino de Deus é o Reio da Graça,
da benção, da superação de tudo aquilo que impede de o ser humano
desenvolver-se otimamente rumo ao seu Criador e Pai.
Assim, aqui o autor
quer mostrar um novo conceito social, político, cultural e religioso. De forma
análoga, não era possível que a mensagem de Jesus encontrasse esta sociedade
alienada em sua maneira anacrônica de pensar e fosse transformada por sua
pregação. Era preciso que cada um entendesse e confiasse naquela mensagem
transformadora que Jesus anunciará com toda ênfase e firmeza a todos quantos
quiserem o seguir. O convite será feito de muitas formas diferentes, mas a
mensagem de transformação da vida, numa nova proposta e numa etapa ainda mais
exigente será o elo no qual se apoiará a mensagem lucana aos povos de origem
grega, especialmente àqueles oriundos das comunidades fundadas por Paulo em
suas viagens.
Por fim, esta passagem
tem um dos mais importantes termos do Novo Testamento. Destaca a atualidade da
mensagem salvífica e assume a dimensão temporal de maneira a gerar um dinamismo
próprio daqueles que foram ungidos e batizados. É no hoje (4, 21), o kairoj em que se apoiará a mensagem
paulina de forma contundente. É preciso que a conversão aconteça hoje e não se
espere por algo que ainda poderá vir, mas se creia na Boa Nova de Jesus Cristo
e naquele que o enviou ao mundo, Deus Pai. O texto confirma o tempo favorável
da ação de Deus. Para os que esperavam o Tempo Messiânico, a palavra objetiva
de Jesus serviu como um conforto. Mas os que detinham o poder viam sua
supremacia ideológica misteriosamente usurpada e profanada e buscavam deter o
entusiasmo daqueles que acreditavam: Não
é este o filho de José? (4, 22). Neste cenário, Jesus demostra sua missão
como aquela em que os mais humildes poderão, finalmente, sentirem a presença de
um Deus que é misericórdia e compaixão.
A oposição a Jesus vai
se tornar cada vez maior à medida em que ele vai avançando sobre os pilares
estabelecidos pela velha oligarquia sagrada que a tudo normatizava em
conformidade com os seus interesses antagônicos. Jesus vai estabelecer, em
Lucas, uma mensagem para os de fora,
em oposição aos de dentro. Pode-se
compreender porque que estes temas voltarão a perpassar diversas perícopes do texto
lucano. Era agora necessário um tempo de favorecimento incondicional aos
pobres, àqueles que aceitaram a mensagem salvadora e àqueles que se
confrontavam diante das opressões a que eram submetidos, mas que nem por isso
alienavam-se na crença de que aos pobres era necessário o sofrimento e aos
escolhidos, as graças.
Por fim, o início da
missão de Jesus, após o batismo, o testemunho na sinagoga, a pregação na
periferia de Cafarnaum era o modelo da ação que o discípulo deveria entrever na
sua realidade cultural, especialmente começando por Jerusalém (24, 47), mas não
parando por aí. Indo até confins do mundo (Atos 1,8), pregando uma nova
esperança a todos os que desistiram de buscar forças para uma nova vida
alicerçada no Espírito Santo.
Do deserto a Nazaré e
Cafarnaum, Lucas vai baseando a vida de Jesus na sua autoridade, que vem do Pai
(3, 22) e que a todos toma de espanto, por suas obras que certificam a vinda do
Reino (4, 36). Ao sair da sinagoga de Cafarnaum, cidade em que morava, entra na
casa de Simão, onde realiza muitas curas. Sua filiação divina é revelada. Mas
não para onde está. Caminha sempre pois o Reino se faz caminhando. É na vida e
na história que a realidade salvífica do novo Povo de Deus se realiza. Sair da
própria terra, de seu convívio pessoal, como exemplo dado pelo próprio Jesus, é
essencial para que a mensagem evangélica possa adentrar nos mais diversos povos
de maneira eficaz e atual. É preciso fazer este caminho. E este movimento
independe de qualquer limitador externo, posição social, condições pessoais ou
ideologias. É um acompanhar o caminho que nos faz seguidores.
O caminho que Jesus
convida em Lucas é o caminho daqueles que perguntam: o que devemos fazer? O Filho de Adão, é o Filho de Deus e ajuda a
sair dos fundamentalismos fracassados de todos os tempos. A realização de Jesus
com o poder, deixa claro aos discípulos como deverão se comportar diante dos
poderosos. O poder econômico, o poder político e o poder religioso da época de
Jesus, não puderam compreender a opção do nazareno. É em vista de sua
honestidade e obediente escolha por cumprir a vontade do Pai, que Jesus faz a
opção por aquilo que acredita e que se apresenta diante dele em sua missão. Os
discípulos não poderão escolher outro caminho se quiserem compreender e viver a
mensagem evangélica. Convidados à partilha, à oração e à vida no Espírito, a
comunidade que lê o texto de Lucas, moradores da cidade, ricos e pobres, o
cântico de Maria, mãe de Jesus, como o anúncio plenificado da mensagem
realizada. Subverte a estrutura social e exalta os humildes, enquanto derruba
dos ricos de seus tronos. O único reino que não terá fim será o de Jesus. Mas
isso somente entenderão que compreender o lugar do próximo na organização da
comunidade. Assim, a prática cristã é baseada numa nova prática que Lucas quer
deixar bem claro nos seus dois livros. Não é possível acreditar em Jesus Cristo
e manter-se nos limites das injustas relações em favor da injustiça. Em
sintonia com sua missão, Jesus observa a abrangência ímpar da mensagem do Reino
e estabelece nas comunidades uma nova partilha simbolizada no dito tudo o que é meu, é teu (15,31) e
atualiza aquele designo temporal kairológico. Afinal, não era mais possível que
a comunidade esperasse pela segunda vinda de Jesus como algo quase que imediato
ao anúncio da Palavra e à conversão. Era necessário que a comunidade vivesse
agora o ideal da partilha e da justiça, dentro da casa e na diversidade de
membros. A experiência da ressurreição faz com que os discípulos abram a sua casa para que ele possa adentrar. O medo
não mais deve acompanhar o discípulo. Ele sabe que por acreditar em Jesus
sofrerá perseguições. Entretanto, é preciso que sua fé esteja no mundo como sal
e fermento e consiga, pelo testemunho, atrair outros mais ao seguimento do
Mestre.
Após a ressurreição,
era preciso que a comunidade reconhecesse Jesus na partilha e na solidariedade.
Era preciso voltar à Jerusalém e
recolocar-se no caminho, como bem fizeram os Discípulos de Emaús (24, 13-35). O
projeto de Jesus continua vivo e atuante na comunidade. É preciso trazer o
cristão para o centro. Para a cidade, para o desafio da pregação em meio às
crises do caminho. Assumindo o medo, o convertido vai além do conformismo com a
condição em que se encontra a sociedade e sua família. Lucas mostra muito bem
que no caminho e nas travessias, as tempestades e as dificuldades no caminho
são permanentes. Todavia, é neste caminho que acontecem curas, conversões e
novos se aproximam do Mestre para ouvi-lo e lhe falar. Era preciso tocar a
lepra. Era preciso ir para além do Templo. Era preciso apresentar um novo tempo
e uma nova esperança, alicerçada na misericórdia e na concordância ao
Evangelho.
O evangelista no texto
de Lucas apresenta um Jesus, que é o Cristo (1, 32; 22, 67), o Filho de Deus
(1, 35; 22, 70), o Profeta (4, 24; 13, 33), o Salvador (2, 11), o Servo (2, 43;
3, 22) e o Rei (22, 28.30). Para os povos que o conheceram sem terem antes
conhecido a Lei e os profetas, foi uma maneira autêntica de trazer os
fundamentos da fé e confirma-los na pessoa de Jesus, como cumprimento da
promessa do Pai. Ele é o Cristo, o Filho de Deus e o Senhor. Sob este tripé, a
obra lucana estabelecerá a seus leitores, especialmente de origem grega,
distantes do conhecimento judaico, as bases onde se fundamenta a pessoa de
Jesus como Profeta, Salvador, Rei e Servo. Este Jesus profeta vem numa
cristologia corajosa, ativa que reflete a concordância da comunidade de que
Jesus estava presente na missão. A comunidade então torna-se dom e lugar
exemplar onde acontece a partilha, o trabalho e a justiça querida por Deus.
Esta comunidade entende-se misericordiosa e tem a coragem de estar com o irmão
e o tornar senhor de sua história e pai de um novo povo. É esta virtude moral
que impõe à sociedade e à comunidade, princípios éticos e sociais que
interpelam para uma escatologia presente no kairoj dinâmico e exigente de uma
eclesiologia que ultrapassa velhas posturas e é dirigida a todos os que são amigos de Deus.
A comunidade percebe
que, por suas forças, não poderá viver o Evangelho. É preciso uma força do alto (24,49) que os impelirá a
proclamar um tempo novo, que mudará o mundo.
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