quarta-feira, 2 de agosto de 2017

AS PESSOAS DIVINAS: EXPRESSÃO DE UM COMUNICAR INFINITO


Este artigo quer tornar possível a aproximação entre Scotus e Eckhart. Como Scotus bem discerne sobre as inúmeras confusões no campo de estudos sobre a Santíssima Trindade, busca bem especular os mistérios da fé, Dotado de um raciocínio ímpar, é capaz de, numa discussão, desconstruir argumentos equivocados e forjar novos, ao mesmo tempo em que mantém sua linha primeira de análise e raciocínio. Com Scotus, talvez a “Teologia cristã tenha atingido os mais altos píncaros da especulação”.

Por outro lado, Eckhart, homem versado na pregação e no ensinamento do Evangelho também junto ao povo iletrado, caracterizou-se pela vocação mística “que o fez uma das maiores testemunhas do evento crístico por excelência: a transparência divina em meio aos mais profundos abismos humanos”. Exigia de quem o escutava, muita sutileza, por seu estilo deveras paradoxal. Seu estilo e profundidade nas especulações, revelam uma particular mística.

1.    JOHANNES DUNS SCOTUS


Entrou muito jovem na Ordem dos Frades Menores (cerca de 1280). Ordenado sacerdote a 17.3.1291, continuou os estudos de teologia em Oxford (1291-1293) e Paris (1293-1296), onde teve como mestre, entre outros, Gonçalvo Hispano. Tendo regressado a Inglaterra em 1297, lê as Sentenças em diversos centros (studia) da Ordem: primeiro em Cambridge (Lectura Cantabrigiensis conservada no manuscrito 112 da biblioteca comunal de Todi), a partir de julho de 1300 em Oxford (Lectura I Oxon., que constitui a primeira redação do Opus Ox. ou Ordinatio) e, finalmente, em fins de 1302 e princípios de 1303 em Paris (manuscrito 66 do Merton College). Recusando-se a subscrever a petição de Filipe, o Belo, contra Bonifácio VIII, é coagido a abandonar Paris e vai continuar a sua carreira docente em Oxford. Em breve, sanado o conflito entre o Papa e o rei, regressa a Paris onde, mediante proposta do ministro geral, Gonçalvo Hispano, de 18.11.1304, obtém o grau de doutor em fins de 1305. De 1305 a 1306 comenta de novo as Sentenças, agora como mestre regente, no Studium franciscano em Oxford (1305-1306) e, em seguida, em Paris (1306-1307).
Em fins de 1307, por motivos a que não deve ser estranha a situação provocada pelo processo contra os Templários e a desconfiança a que foram votados nos meios parisienses os defensores da Imaculada Conceição, é enviado para Colônia, onde morre aos 43 anos. O seu corpo repousa na Minoritenkirche dos Franciscanos Conventuais, em Colônia. Sobre o seu túmulo lê-se, a partir de 1870: Scotia me genuit, Anglia me suscepit, Gallia me docuit, Colonia me tenet.
Foi honrado, ainda em vida, com o título de Doutor Sutil a que posteriormente se juntou o de Doutor Mariano. Com a doutrina divulgou-se a fama de suas virtudes, sendo-lhe prestado culto público em diversos lugares (Colônia e Nola). O processo de beatificação e canonização foi introduzido em 1905. Foi beatificado em 20 de março de 1993, durante o pontificado do Papa João Paulo II. Na liturgia é lembrado no dia 08 de maio.

1.1    As pessoas em Deus são um contínuo “tornar-se”

Duns Scotus afirma que Deus é um ser eminentemente pessoal e se distingue das criaturas de modo absoluto. Assim, um ser totalmente desvinculado do universo e, portanto, distinto dele. Fazem parte dos seus requisitos, a total independência do mundo criado e a subsistência plena em si mesmo (unidade, inteligência e vontade livre).
A personalidade de Deus é constituída, fundamentalmente, por sua total independência e incomunicabilidade (cf. Ordinatio I, d. 23,. N. 16). Sentido positivo, expressão de uma existência autônoma e uma real subsistência. Para Scotus, este é o que define a pessoa: ser por si mesmo. Além disso, para ele a unicidade proveniente de sua infinitude é constituinte da personalidade de Deus. Como a perfeição em Deus é infinita, tornada assim irrepetível, não pode haver contradição entre a infinitude e a incomunicabilidade.
Deus opera independente de qualquer outro ente e, portanto, além de não ser causado por nenhum outro, ele deve ser soberanamente livre por ser autônomo no agir. Deus não pode não se revelar como ser perfeitamente pessoal. Mesmo que Deus não tivesse se revelado como sendo três Pessoas-Trindade seria necessário concluir que Ele é pessoa e, portanto, um ser constituído por uma inteligência e uma vontade inteiramente livre. O modo de Deus ser é sua subsistência.

1.2    Deus é formalmente amor e, portanto, Trindade Una e Simples

O atributo divino que Duns Scotus mais salienta é o amor. A criação, então, é a produção livre e total do ser das criaturas e acolhida como a comunicação livre ad extra de Deus. Na Encarnação, é o sentido e a razão de ser da criação. É pela Encarnação do Verbo que Deus oferece a possibilidade de participação plena à sua vida íntima. Livremente, Deus deseja reconduzir todas as criaturas a si. Afirma que “Deus é formalmente amor não apenas no seu operar, mas também no seu ser”. (Ordinatio I, d. 17, q. 3, n. 3). Para Scotus, a revelação bíblica é a única capaz de nos dar o conhecimento perfeito da vida íntima de Deus.
Cabe ao teólogo a tarefa de afirmar a Trindade das pessoas em Deus e a unidade de sua essência. Descarta, com sutileza, a aparente contradição entre as preposições. Para ele, do ponto de vista lógico, é possível toda reflexão onde não haja contradição (ou seja, afirmar e negar a mesma coisa, sob o mesmo aspecto). Encontramo-nos diante de duas afirmações diversas: Unidade da Essência e Trindade das Pessoas.
Portanto, não existe contradição ao afirmar simultaneamente: Unidade = Essência e Trindade = Pessoas. Como conciliar a pluralidade das Pessoas com a unidade da Essência? É uno em razão de sua própria natureza, ser único e não irrepetível. É plural da distinção das Pessoas em virtude de suas relações de origem.

1.3  Enquanto incomunicável, Pessoa é ‘última solidão’

Ontologicamente, o que diferencia a Pessoa da natureza/essência é a incomunicabilidade. Diferencial como realidade positiva em grau máximo. O máximo grau de ser. A existência autônoma/a subsistência incomunicável é constitutivo da Pessoa. Então, qual é o elemento que distingue Pessoa de Substância/Essência? É a incomunicabilidade entendida como modo de existir próprio, específico.
O que distingue, portanto, cada uma das pessoas no interior da Trindade, é o modelo próprio e incomunicável de cada uma possuir a mesma e única natureza divina. A unidade acontece na mesma e única natureza divina. A distinção é o modo próprio e incomunicável de cada uma possuir a mesma essência. De que maneira, então, cada Pessoa possuirá, a seu modo próprio, a mesma e idêntica natureza que lhes é comum?

1.4 Enquanto ‘distinta de’ e ‘referida a’, Pessoa é ‘relação’

Elemento constitutivo da Pessoa Divina é a relação que distingue e, ao mesmo tempo, congrega cada pessoa às demais. Em resumo: essência e relação; reciprocamente, inclusivas. A essência é a única realidade substancial, na qual as Pessoas subsistem. A relação que distingue e une as Pessoas, de modo próprio, incomunicável. Scotus se pergunta: o caráter ontológico (status) seria absoluto ou relativo? Em virtude da unidade da essência, a Pessoa é em si um valor absoluto.
As Pessoas são relativas em virtude da mútua e recíproca relação na qual são constituídas como termos ou polos desta mesma relação. São entretanto absolutas na medida em que se identificam com a mesma substancia divina que é absoluta.
1.5. As processões trinitárias são um contínuo tornar-se
A substância única e imutável do Deus Unitrino não é estática nem isenta de qualquer atividade, mas é essencialmente ato puro de ser e de operar. Por outro lado, as Pessoas são intrínseca e essencialmente dinâmicas. E isto porque a essência se encontra intimamente em unidade a cada uma das Pessoas e cada uma das relações com a única essência. Esta perene atual atividade, ele exprime pelo verbo latino in fieri (tornar-se), não resolvendo com a matriz aristotélica da potência ao ato, mas melhor com a eterna processão ou origem de uma Pessoa da outra.
Duns Scotus concebe a Trindade como uma comunidade perfeita de pessoas na mesma vida infinita de conhecimento e amor, expressos e realizados na perfeita atualidade pericorética, de uma mútua presença de uma Pessoa nas outras (circuminsessio) e de uma recíproca penetração de cada uma nas demais (circummicessio).


2.    Mestre Eckhart: o recíproco “in-existir” entre Criador e criatura


Portal de Mestre Eckhart, na igreja de Erfurt, Turíngia, Alemanha.

Nasceu em 1260 na Turíngia, ingressou na ordem dominicana (c. 1275) em Erfurt, e terminando o noviciado, frequentou o curso de “artes” (filosofia) em Paris e o estudo geral de colônia (c. 1280), onde absorveu o pensamento filosófico-teológico de Santo Alberto Magno (+ 15/11/1280), embora este já tivesse deixado a cátedra. 
Transferindo-se para Colônia (1322-1323) como reitor da escola geral dos dominicanos. Em 1326 foi acusado de heresia pelo arcebispo de Colônia, Henrique de Virneburg. A congregação tentou defender a ortodoxia de Eckhart, algo inútil. Apelou-se para o Papa João XXII, o processo foi transferido para Avignon, onde ele pode se defender, mas morreu provavelmente no início de 1328, antes do final do processo.
Das 59 proposições apresentadas como heréticas apenas 28 foram consideradas objeto de julgamentos, das quais 17 foram condenadas e 11 declaradas temerárias (mas suscetíveis de uma interpretação católica ortodoxa).
Doutrina: de maneira notável, Eckhart segue as pegadas também dos escritores da mística trinitária, particularmente do pseudo-Dionísio e de Santo Agostinho e deles haure alguns elementos da imagem divina do fundo da alma. Além disso, mediante influencia de santo Alberto Magno e Ulrico de Estrasburgo, inspira-se notavelmente no neoplatonismo.  

2.1 Influências

É verdadeiramente notável, toda a mística alemã do século XIV se remete a Eckhart. Sua doutrina do “fundo de Deus” e “fundo da alma” torna-se uma doutrina comum entre grandes místicos. Para Eckhart “todas as coisas são o que são no absolutamente maior”. À diferença das doutrinas emanacionaistas de origem neoplatônica, ele propõe uma espécie de identificação entre Criador e criatura, expressão de um in-existir, que só é possível na preposição de um criador unitrino que opera impulsionado e sustentado por seu querer livre e gratuito.
Portanto, ao ser de Deus nas criaturas corresponde o ser das criaturas em Deus e isto como expressão da absoluta liberdade do criador, que é quem toma a iniciativa e quem sustenta este processo criador. Sendo assim às coisas não é dado experimentar algum tipo de existência plenamente independente e totalmente desvinculada de Deus. 

2.2 Em Deus coexistem alteridade e singularidade

O fato é que o Pai não seja o Filho e que ambos não se confundam com o Espírito Santo, e vice-versa. Eleva-se, por assim dizer, à esfera intradivina os princípios da alteridade e da identidade. Enquanto princípios instauradores da reciprocidade de relações entre os divinos três, eles condicionam a ação divina ad extra, fazendo com que produzam juntos um mundo conforme seu específico modo de ser e de existir: o da unidade na diferença.
Na perspectiva cristã o mundo emerge como interlocutor que dialogo com o Criador uno e trino. As criaturas participam, porém, da diferenciação de seu Criador. “Todas as criaturas carregam uma negação em si, uma nega a outra”. O ser humano é destinado a realizar uma vocação especial, pois, segundo ele: “Deus, quando fez o homem, realizou na alma uma obra a ele igual, a sua obra operante” deste modo o ser humano é chamado a cooperar com o Criador, a partir das coisas criadas juntamente com Ele, numa ação sinergética.

2.3 A “pericorese universal”: o operar comum no recíproco in-existir

Para Eckhart não apenas as coisas estão no mundo, também Deus se encontra nas coisas e, por este motivo, a razão pode desentranhá-lo presente no livro aberto da natureza. Deus se torna o que de fato Ele é: Deus no mundo e para o mundo. Este “tornar-se” atribuído a Deus deve ser considerado obviamente em sentido analógico. Pois não é intenção dele introduzir nenhum tipo de processualidade histórica na essência divina.  
Como podemos perceber, o ser humano é inserido na vida mesma do Deus uno e trino e, e mediante a experiência mística, ele é como que admitido à intimidade das relações mutuas e reciprocas entre os divinos três.  
Deste modo, o mundo não é Deus, e Deus não se confunde com o mundo. As relações entre ambos são recíprocas e livres. A onipotência divina não absorve nem anula a criatura, como também a criatura não absorve a onipotência divina.  

Considerações finais

Scotus e Eckhart destacam-se, como tivemos ocasião de constatar, por uma altíssima especulação aplicada aos mistérios cristãos. Sendo assim, percebe-se que ambos se completam, na medida que o primeiro elabora uma ousada e profunda doutrina trinitária, enquanto o segundo se esmera nas considerações acerca da relação estreita entre o Criador uni-trino e o mundo de suas criaturas. São filhos de um rico período histórico. São frutos maduros formados a partir do melhor pensamento e das reflexões mais importantes do mundo medieval.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

TAVARES, Sinivaldo S. Trindade e Criação. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 175-188.

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