Este artigo quer tornar possível a aproximação entre Scotus e Eckhart. Como Scotus
bem discerne sobre as inúmeras confusões no campo de estudos sobre a Santíssima
Trindade, busca bem especular os mistérios da fé, Dotado de um raciocínio
ímpar, é capaz de, numa discussão, desconstruir argumentos equivocados e forjar
novos, ao mesmo tempo em que mantém sua linha primeira de análise e raciocínio.
Com Scotus, talvez a “Teologia cristã tenha atingido os mais altos píncaros da
especulação”.
Por
outro lado, Eckhart, homem versado na pregação e no ensinamento do Evangelho
também junto ao povo iletrado, caracterizou-se pela vocação mística “que o fez
uma das maiores testemunhas do evento crístico por excelência: a transparência
divina em meio aos mais profundos abismos humanos”. Exigia de quem o escutava,
muita sutileza, por seu estilo deveras paradoxal. Seu estilo e profundidade nas
especulações, revelam uma particular mística.
1.
JOHANNES
DUNS SCOTUS
Entrou
muito jovem na Ordem dos Frades Menores (cerca de 1280). Ordenado sacerdote a
17.3.1291, continuou os estudos de teologia em Oxford (1291-1293) e Paris (1293-1296),
onde teve como mestre, entre outros, Gonçalvo Hispano. Tendo regressado a
Inglaterra em 1297, lê as Sentenças em diversos centros (studia) da Ordem: primeiro em Cambridge (Lectura Cantabrigiensis conservada no manuscrito 112 da biblioteca
comunal de Todi), a partir de julho de 1300 em Oxford (Lectura I Oxon., que constitui a primeira redação do Opus Ox. ou Ordinatio) e, finalmente, em fins de 1302 e princípios de 1303 em
Paris (manuscrito 66 do Merton College). Recusando-se a subscrever a petição de
Filipe, o Belo, contra Bonifácio VIII, é coagido a abandonar Paris e vai
continuar a sua carreira docente em Oxford. Em breve, sanado o conflito entre o
Papa e o rei, regressa a Paris onde, mediante proposta do ministro geral,
Gonçalvo Hispano, de 18.11.1304, obtém o grau de doutor em fins de 1305. De
1305 a 1306 comenta de novo as Sentenças, agora como mestre regente, no Studium franciscano em Oxford
(1305-1306) e, em seguida, em Paris (1306-1307).
Em
fins de 1307, por motivos a que não deve ser estranha a situação provocada pelo
processo contra os Templários e a desconfiança a que foram votados nos meios
parisienses os defensores da Imaculada Conceição, é enviado para Colônia, onde
morre aos 43 anos. O seu corpo repousa na Minoritenkirche dos Franciscanos
Conventuais, em Colônia. Sobre o seu túmulo lê-se, a partir de 1870: Scotia me genuit, Anglia me suscepit, Gallia
me docuit, Colonia me tenet.
Foi
honrado, ainda em vida, com o título de Doutor Sutil a que posteriormente se
juntou o de Doutor Mariano. Com a doutrina divulgou-se a fama de suas virtudes,
sendo-lhe prestado culto público em diversos lugares (Colônia e Nola). O
processo de beatificação e canonização foi introduzido em 1905. Foi beatificado
em 20 de março de 1993, durante o pontificado do Papa João Paulo II. Na
liturgia é lembrado no dia 08 de maio.
1.1 As
pessoas em Deus são um contínuo
“tornar-se”
Duns Scotus afirma que Deus é um ser
eminentemente pessoal e se distingue das criaturas de modo absoluto. Assim, um
ser totalmente desvinculado do universo e, portanto, distinto dele. Fazem parte
dos seus requisitos, a total independência
do mundo criado e a subsistência plena em si mesmo (unidade, inteligência e vontade livre).
A personalidade de Deus é constituída, fundamentalmente, por sua total
independência e incomunicabilidade (cf. Ordinatio I, d. 23,. N. 16). Sentido
positivo, expressão de uma existência
autônoma e uma real subsistência. Para Scotus, este é o que define a
pessoa: ser por si mesmo. Além disso, para ele a unicidade proveniente de sua infinitude é constituinte da personalidade de Deus. Como a
perfeição em Deus é infinita, tornada assim irrepetível, não pode haver
contradição entre a infinitude e
a incomunicabilidade.
Deus opera independente de qualquer
outro ente e, portanto, além de não ser causado por nenhum outro, ele deve ser
soberanamente livre por ser autônomo no agir. Deus não pode não se revelar como
ser perfeitamente pessoal. Mesmo
que Deus não tivesse se revelado como sendo três Pessoas-Trindade seria
necessário concluir que Ele é pessoa e, portanto, um ser constituído por uma inteligência e uma vontade inteiramente livre. O modo de Deus ser é sua subsistência.
1.2 Deus
é formalmente amor e, portanto, Trindade Una e Simples
O atributo divino que Duns Scotus
mais salienta é o amor. A criação, então, é a produção livre e total do ser das
criaturas e acolhida como a comunicação livre ad extra de Deus. Na Encarnação,
é o sentido e a razão de ser da criação. É pela Encarnação do Verbo que Deus
oferece a possibilidade de participação plena à sua vida íntima. Livremente,
Deus deseja reconduzir todas as criaturas a si. Afirma que “Deus é formalmente
amor não apenas no seu operar, mas também no seu ser”. (Ordinatio I, d. 17, q. 3, n. 3). Para Scotus, a revelação bíblica é
a única capaz de nos dar o conhecimento perfeito da vida íntima de Deus.
Cabe ao teólogo a tarefa de afirmar a
Trindade das pessoas em Deus e a unidade de sua essência. Descarta, com
sutileza, a aparente contradição entre as preposições. Para ele, do ponto de
vista lógico, é possível toda reflexão onde não haja contradição (ou seja,
afirmar e negar a mesma coisa, sob o mesmo aspecto). Encontramo-nos diante de
duas afirmações diversas: Unidade da Essência e Trindade das Pessoas.
Portanto, não existe contradição ao
afirmar simultaneamente: Unidade = Essência e Trindade = Pessoas. Como
conciliar a pluralidade das Pessoas com a unidade da Essência? É uno em razão
de sua própria natureza, ser único e não irrepetível. É plural da distinção das
Pessoas em virtude de suas relações de origem.
1.3 Enquanto
incomunicável, Pessoa é ‘última solidão’
Ontologicamente, o que diferencia a Pessoa
da natureza/essência é a incomunicabilidade. Diferencial como realidade positiva
em grau máximo. O máximo grau de ser. A existência autônoma/a subsistência
incomunicável é constitutivo da Pessoa. Então, qual é o elemento que distingue
Pessoa de Substância/Essência? É a incomunicabilidade entendida como modo de
existir próprio, específico.
O que distingue, portanto, cada uma
das pessoas no interior da Trindade, é o modelo próprio e incomunicável de cada
uma possuir a mesma e única natureza divina. A unidade acontece na mesma e
única natureza divina. A distinção é o modo próprio e incomunicável de cada uma
possuir a mesma essência. De que maneira, então, cada Pessoa possuirá, a seu
modo próprio, a mesma e idêntica natureza que lhes é comum?
1.4 Enquanto ‘distinta de’ e ‘referida a’, Pessoa é
‘relação’
Elemento constitutivo da Pessoa
Divina é a relação que distingue e, ao mesmo tempo, congrega cada pessoa às
demais. Em resumo: essência e relação; reciprocamente, inclusivas. A essência é
a única realidade substancial, na qual as Pessoas subsistem. A relação que
distingue e une as Pessoas, de modo próprio, incomunicável. Scotus se pergunta:
o caráter ontológico (status) seria absoluto ou relativo? Em virtude da unidade
da essência, a Pessoa é em si um valor absoluto.
As Pessoas são relativas em virtude
da mútua e recíproca relação na qual são constituídas como termos ou polos
desta mesma relação. São entretanto absolutas na medida em que se identificam
com a mesma substancia divina que é absoluta.
1.5. As processões
trinitárias são um contínuo tornar-se
A substância única e imutável do Deus
Unitrino não é estática nem isenta de qualquer atividade, mas é essencialmente
ato puro de ser e de operar. Por outro lado, as Pessoas são intrínseca e
essencialmente dinâmicas. E isto porque a essência se encontra intimamente em
unidade a cada uma das Pessoas e cada uma das relações com a única essência. Esta
perene atual atividade, ele exprime pelo verbo latino in fieri (tornar-se), não
resolvendo com a matriz aristotélica da potência ao ato, mas melhor com a eterna
processão ou origem de uma Pessoa da outra.
Duns Scotus concebe a Trindade como
uma comunidade perfeita de pessoas na mesma vida infinita de conhecimento e
amor, expressos e realizados na perfeita atualidade pericorética, de uma mútua
presença de uma Pessoa nas outras (circuminsessio)
e de uma recíproca penetração de cada uma nas demais (circummicessio).
2. Mestre
Eckhart: o recíproco “in-existir” entre Criador e criatura
Portal de Mestre Eckhart, na igreja de Erfurt, Turíngia, Alemanha.
Nasceu em 1260 na Turíngia, ingressou
na ordem dominicana (c. 1275) em Erfurt, e terminando o noviciado, frequentou o
curso de “artes” (filosofia) em Paris e o estudo geral de colônia (c. 1280),
onde absorveu o pensamento filosófico-teológico de Santo Alberto Magno (+
15/11/1280), embora este já tivesse deixado a cátedra.
Transferindo-se para Colônia
(1322-1323) como reitor da escola geral dos dominicanos. Em 1326 foi acusado de
heresia pelo arcebispo de Colônia, Henrique de Virneburg. A congregação tentou
defender a ortodoxia de Eckhart, algo inútil. Apelou-se para o Papa João XXII, o
processo foi transferido para Avignon, onde ele pode se defender, mas morreu
provavelmente no início de 1328, antes do final do processo.
Das 59 proposições apresentadas como
heréticas apenas 28 foram consideradas objeto de julgamentos, das quais 17 foram
condenadas e 11 declaradas temerárias (mas suscetíveis de uma interpretação
católica ortodoxa).
Doutrina: de maneira notável, Eckhart
segue as pegadas também dos escritores da mística trinitária, particularmente
do pseudo-Dionísio e de Santo Agostinho e deles haure alguns elementos da
imagem divina do fundo da alma. Além disso, mediante influencia de santo
Alberto Magno e Ulrico de Estrasburgo, inspira-se notavelmente no
neoplatonismo.
2.1 Influências
É
verdadeiramente notável, toda a mística alemã do século XIV se remete a
Eckhart. Sua doutrina do “fundo de Deus” e “fundo da alma” torna-se uma
doutrina comum entre grandes místicos. Para Eckhart “todas as coisas são o que
são no absolutamente maior”. À diferença das doutrinas emanacionaistas de
origem neoplatônica, ele propõe uma espécie de identificação entre Criador e
criatura, expressão de um in-existir, que só é possível na preposição de um
criador unitrino que opera impulsionado e sustentado por seu querer livre e
gratuito.
Portanto,
ao ser de Deus nas criaturas corresponde o ser das criaturas em Deus e isto
como expressão da absoluta liberdade do criador, que é quem toma a iniciativa e
quem sustenta este processo criador. Sendo assim às coisas não é dado
experimentar algum tipo de existência plenamente independente e totalmente
desvinculada de Deus.
2.2 Em Deus coexistem
alteridade e singularidade
O
fato é que o Pai não seja o Filho e que ambos não se confundam com o Espírito
Santo, e vice-versa. Eleva-se, por assim dizer, à esfera intradivina os
princípios da alteridade e da identidade. Enquanto princípios instauradores da
reciprocidade de relações entre os divinos três, eles condicionam a ação divina
ad extra, fazendo com que produzam
juntos um mundo conforme seu específico modo de ser e de existir: o da unidade
na diferença.
Na
perspectiva cristã o mundo emerge como interlocutor que dialogo com o Criador
uno e trino. As criaturas participam, porém, da diferenciação de seu Criador.
“Todas as criaturas carregam uma negação em si, uma nega a outra”. O ser humano
é destinado a realizar uma vocação especial, pois, segundo ele: “Deus, quando
fez o homem, realizou na alma uma obra a ele igual, a sua obra operante” deste
modo o ser humano é chamado a cooperar com o Criador, a partir das coisas
criadas juntamente com Ele, numa ação sinergética.
2.3 A “pericorese
universal”: o operar comum no recíproco
in-existir
Para
Eckhart não apenas as coisas estão no mundo, também Deus se encontra nas coisas
e, por este motivo, a razão pode desentranhá-lo presente no livro aberto da
natureza. Deus se torna o que de fato Ele é: Deus no mundo e para o mundo. Este
“tornar-se” atribuído a Deus deve ser considerado obviamente em sentido
analógico. Pois não é intenção dele introduzir nenhum tipo de processualidade
histórica na essência divina.
Como
podemos perceber, o ser humano é inserido na vida mesma do Deus uno e trino e,
e mediante a experiência mística, ele é como que admitido à intimidade das
relações mutuas e reciprocas entre os divinos três.
Deste
modo, o mundo não é Deus, e Deus não se confunde com o mundo. As relações entre
ambos são recíprocas e livres. A onipotência divina não absorve nem anula a
criatura, como também a criatura não absorve a onipotência divina.
Considerações finais
Scotus
e Eckhart destacam-se, como tivemos ocasião de constatar, por uma altíssima
especulação aplicada aos mistérios cristãos. Sendo assim, percebe-se que ambos
se completam, na medida que o primeiro elabora uma ousada e profunda doutrina
trinitária, enquanto o segundo se esmera nas considerações acerca da relação
estreita entre o Criador uni-trino e o mundo de suas criaturas. São
filhos de um rico período histórico. São frutos maduros formados a partir do
melhor pensamento e das reflexões mais importantes do mundo medieval.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA